quarta-feira, 27 de julho de 2011

CARTA DE CRISTOVÃO COLOMBO ANUNCIANDO A DESCOBBERTA DO NOVO MUNDO

14 de fevereiro de 1493 
A Luis de Santágel

Eu vos escrevo, Senhor, sabendo do grande prazer que tereis ao tomar conhecimento de que Nosso Senhor deu um resultado triunfal à minha viagem. Sabei, portanto, que, em trinta e três dias cheguei às Índias com a armada que me deram meus ilustres senhores, o rei e a rainha. Achei aí numerosas ilhas das quais tomei possessão em nome de Suas Altezas por proclamação fazendo desfraldar o estandarte real e não encontrei nenhuma oposição. A primeira ilha que descobri, eu a chamei de San Salvador em honra a Divina Majestade que me deu tudo isso por milagre; os indígenas a chamam Guanahani. À segunda, dei o nome de Santa‑Maria‑de‑la‑Concepción; à terceira, Fernandina; à quarta, Isabela; à quinta, Juana (Cuba). (...) Desde o cabo que termina avista‑se a oeste uma ilha distante de dezoito léguas. Dei‑lhe o nome de Espanhola (Haiti:); lá fui ter e segui a costa norte, indo rumo ao leste durante 178 grandes léguas em linha reta para o Oriente. Tanto a Juana quanta essa ilha e todas outras ilhas são bastante férteis. A Juana o é particularmente; suas costas são recortadas por uma certa quantidade de portos, muito superiores aos que conheço na cristandade. Existe uma multidão de rios de águas potáveis e abundantes; as terras aí são muito altas, com muitas montanhas altíssimas, mais altas que as da Ilha Tenerife. Essas ilhas são mui belas, de contornos variados, bastante penetráveis, recobertas de mil tipos de arvores majestosas que parecem tocar o céu. Creio mesmo que jamais perdem as folhas, pois eu as vi tão verdes e bonitas quanto estão as árvores no mês de maio na Espanha. Algumas são cobertas de flores, outras carregam frutos cada uma segundo sua espécie. O rouxinol e outras pássaros cantavam de mil maneiras quando percorri essas regiões em novembro. Há palmeiras de sete ou oito espécies, todas de grande beleza. (...) Essas terras contém minas de metal e são habitadas por inúmeras gentes (...). As gentes (da Ilha Espanhola) e de todas as ilhas que vi vivem todas nuas, tanto os homens quanto as mulheres, tal como suas mães os puseram no mundo. Não têm ferro nem aço, armas não conhecem. São bem feitos e de boa estatura, mas extraordinariamente medrosos.
Não possuem outras armas senão as que fazem de juncos novos, colocando na extremidade uma vareta talhada em ponta, mas ainda não ousam servir‑se dela. Muitas vezes acontecia‑me enviar à terra dois ou três homens rumo a um vilarejo para estabelecer contatos; ainda que em grande número os índios imediatamente punham-se a fugir num salve‑se‑quem‑puder. Não que lhes tivesse sido feito algum mal: pelo contrário, em todo lugar onde pude estabelecer contatos, distribui‑lhes tudo o que podia, panos e muitos outros objetos, sem nada aceitar em troca: mas eles são irremediavelmente medrosos. É verdade que desde que se tranqüilizam e que o terror os abandone mostram‑se de uma simplicidade e de uma generosidade que não se pode crer sem tê‑la visto. Qualquer­ coisa que se lhes pergunta jamais recusam‑na; ao contrário encorajam os pedidos e manifestam tanta amizade que parecem dar os próprios corações. E com tudo o que se lhes dá em troca – coisa de valor ou de pouco preço – ficam contentes. (...) Não têm nenhuma idolatria; crêem apenas que o poder e o bem residem no céu; e acreditaram que eu e meus homens viéssemos do céu com nossas naus. Em todo lugar em que atraco, recebem‑me com respeito devido a um ser divino, desde que o temor os deixe. E, entretanto, têm espírito bastante vivo, percorrendo todos esses mares e sabendo, à maravilha, dar conta de tudo o que observam; contudo jamais viram homens vestido ou embarcações semelhantes à nossa.
Assim que cheguei às Índias, na primeira ilha que descobri, apoderei‑me, à força, de algumas dessas criaturas e levei‑as comigo a fim de ouvir tudo o que havia nessas regiões: de pronto nos compreendemos uns aos outros por meio de mímicas, tanto com palavras quanto com gestos, e elas nos prestaram bastante serviços. Ainda hoje os que trago comigo estão convencidos de que venho do céu, mesmo tendo vivido tanto tempo junto a mim. Foram os primeiros a anunciar a nova terra por todo o lugar onde eu chegasse; os outros punham‑se a correr de cabana em cabana e nos vilarejos circunvizinhos a gritavam: "Venham ver os habitantes do céu". E todos corriam assim que estivessem tranqüilizados, homens, mulheres, a até os mais pequeninos, cada qual trazendo alguma coisa para comer e para beber oferecendo‑nas com maravilhosas mostras de afeto.
Possuem muitas pirogas semelhantes às nossas fustas a remo; grandes, pequenas (...); mas uma fusta não resistiria à comparação na corrida, pois essas pirogas vão a uma velocidade incrível e essas gentes percorrem assim todas as ilhas, que são inumeráveis, e transportam suas mercadorias.
Em todas essas ilhas não verifiquei nenhuma diversidade nos costumes, no aspecto das pessoas, nem na língua. Todos se compreendem, coisa deveras notabilíssima que, espero, incitará Suas Altezas a empreender a conversão delas à nossa Santa fé em relação a qual parecem muito bem dispostos (....).
(...) Nesta Ilha Espanhola, em lugar mui conveniente, o melhor para o acesso às minas de ouro e para o tráfego, tanto aquém como além, rumo à terra firme de Grande Khan (Ásia Oriental), fundei uma grande cidade à qual dei o nome de Navidad e instalei aí uma fortaleza; deixei nela homens em número conveniente com armas, artilharia, provisões para mais de um ano; conservaram uma choupana e têm, entre eles, um construtor de navios apto a todos os misteres. Encontram‑se em grande amizade com o rei desse país que tinha por honra chamar‑me por irmão a tratar‑me como um irmão (...) Em todas essas ilhas parece‑me que os homens se contentam com uma só mulher, mas aquele que os governa, ou rei, possui quase que vinte. As mulheres trabalham mais que os homens, parece‑me. Não pude saber se possuem bens próprios, mas pareceu‑me ter visto que o que um possui todos têm parte nele, especialmente no que concerne à alimentação. Não encontrei homens monstruosos, como muitos presumiam dantes.
São, ao contrário, pessoas de belíssima estatura; não são negros como na Guiné a usam os cabelos pendentes e não habitam onde os raios de sol fazem calor excessivo; o sol, a bem dizer, tem aí grande força, pois essas ilhas estão a 260º de latitude norte (...). Numa ilha que é a segunda quando se chega às Índias, habitam homens que são tidos por mui ferozes e que comem carne humana. Possuem muitas pirogas nas quais percorrem todos os mares da Índia, furtando e tomando tudo o que podem. Não são mais disformes que os outros, mas usam cabelos compridos como mulheres, servem‑se de arcos e de flechas de caniço cuja extremidade é feita com madeira pontuda, à guisa de ferro, metal que não possuem. São considerados ferozes pelos outros povos que são de uma preguiça infinita. E eles se unem a algumas mulheres que habitam, sozinhas, uma ilha chamada Matenin (Martinica). Essas mulheres não se entregam a nenhuma ocupação própria a seu sexo; sevem-se de arcos e flechas e protegem‑se com lâminas de cobre, metal que possuem em abundância.
Asseguram‑me de que existe uma ilha maior que a ilha espanhola, cujos habitantes não têm cabelo e que abunda em ouro acima de todas as outras. Em todas essas ilhas que descobri, fui informado pelo que disseram os índios que levo comigo como testemunhas. Para concluir e falar somente do que foi feito nessa viagem, posso assegurar a Suas Altezas de que dar‑lhes‑ei tanto ouro quanto ser‑lhes-á necessário, se me prestarem uma pequena ajuda, assim como especiarias, algodão, tanto quanto desejarem, e tanta goma quanto pedirem que eu carregue – daquela goma que somente se encontra na Grécia e na Ilha de Quios e que a Senhoria (Veneza) vende pelos preço que quer, acontecendo o mesmo com a madeira de aloé, tanto quanto se quiserem; igualmente os escravos que poderão capturar entre os idólatras. Creio ter achado ruibarbo, canela; quanto aos outros gêneros preciosos, as pessoas que lá deixei encontra‑los-ão pois só me detive na medida em que o vento permitia, salvo nesta cidade de Navidad, onde demorei o tempo necessário para bem provê‑la de toda segurança. A bem verdade, teria explorado muito mais se tivesse navios que se prestassem melhor a isso.
Tudo isso é certo. Deus nosso Senhor deu‑me a vitória como a todos aqueles que seguem seus caminhos nessa empresa que parecia impossível. Mesmo que outros tivessem falado dessas terras, foi sempre por conjecturas, sem tê‑las visto de modo que a maior parte dos que ouviram falar desse assunto tomavam‑no por fábula. Assim, pois, nosso Redentor fez triunfar nossos ilustres rei e rainha e seus reinos famosos com o que toda cristandade deve estar em júbilo, prodigalizar festas e render graças solenemente à Santíssima Trindade em consideração ao crescimento que o afluxo de tantos povos valerá à nossa fé; e também em razão dos bens que resultarão daí, não somente em favor da Espanha mas de todos os cristãos, o que ocorrerá em pouco tempo.
Escrito da caravela, ao largo das Ilhas Canárias (sic por Açores) 15 de fevereiro de 1493.
Após ter escrito tudo isso, caiu sobre mim um tal vento do sul e do sudeste que tive de navegar sem vela e correr ao porto de Lisboa onde agora me encontro, o que foi a coisa mais surpreendente; e daqui escrevo a Suas Altezas... Aqui todos marinheiros dizem que jamais viram tão intenso inverno nem navios perdidos.
Fonte: MAHN‑LOT, Marianne. A descoberta da América. São Paulo: Edições Perspectiva, 1984.

sábado, 23 de julho de 2011

IBGE divulga resultados de estudo sobre cor ou raça

IBGE divulga resultados de estudo sobre cor ou raça

Por racismoambiental, 22/07/2011 10:58
O estudo “Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População: um Estudo das Categorias de Classificação de Cor ou Raça” (PCERP) coletou informações em 2008, em uma amostra de cerca de 15 mil domicílios, no Amazonas, Paraíba, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Distrito Federal. Entre os resultados, destaca-se o reconhecimento, por 63,7% dos entrevistados, de que a cor ou raça influencia na vida.
Entre as situações nas quais a cor ou raça tem maior influência, o trabalho aparece em primeiro lugar, seguido pela relação com a polícia/justiça, o convívio social e a escola.
Dos entrevistados, 96% afirmam saber a própria cor ou raça. As cinco categorias de classificação do IBGE (branca, preta, parda, amarela e indígena), além dos termos “morena” e “negra”, foram utilizadas.
Entre as dimensões da própria identificação de cor ou raça, em primeiro lugar vem a “cor da pele”, com 74% de citações, seguida por “origem familiar” (62%), e “traços físicos” (54%). A íntegra do estudo está disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/caracteristicas_raciais/default_raciais.shtm. Na tabela abaixo, alguns dados iniciais:

Influência da cor ou raça na vida é reconhecida por 63,7% dos entrevistados

Mais da metade dos entrevistados (63,7%) pela PCERP disseram que a cor ou raça influencia a vida das pessoas. Entre as unidades da federação pesquisadas, o maior percentual de resposta afirmativa foi registrado no Distrito Federal (77,0%) e o menor, no Amazonas (54,8%). As mulheres apresentam percentual maior do que os homens: 66,8% delas disseram que a cor ou raça influenciava, contra 60,2% deles. Na divisão por grupos etários, os maiores percentuais de resposta afirmativa ficaram com as pessoas de 25 a 39 anos (67,8%), seguidas pelas pessoas de 15 a 24 anos de idade (67,2%). Os dois grupos se alternam na liderança desse quesito em todos os estados, mas no Distrito Federal o destaque é do grupo de 40 a 59 anos, com 79,5%.
Trabalho é citado como a situação mais influenciada por cor ou raça
Sobre situações em que a cor ou raça influencia a vida das pessoas no Brasil, em primeiro lugar aparece “trabalho”, resposta que foi dada por 71% dos entrevistados. Em segundo lugar aparece a “relação com justiça/polícia”, citada por 68,3% dos entrevistados, seguida por “convívio social” (65%), “escola” (59,3%) e “repartições públicas” (51,3%).
O Distrito Federal se destacou com os maiores percentuais de percepção da influência da cor ou raça em quase todas as situações citadas, tais como “trabalho” (86,2%), “relação com justiça/polícia” (74,1%), “convívio social” (78,1%), “escola” (71,4%) e “repartições públicas” (68,3%). Apenas em “casamento”, a Paraíba ficou com 49,5% contra 48,1% do DF.
96% dos entrevistados afirmam saber a própria cor ou raça
Dos entrevistados, 96% afirmam que saberiam fazer sua autoclassificação no que diz respeito a cor ou raça. Ao ser indagada a cor ou raça (com resposta aberta), 65% dos entrevistados utilizaram uma das cinco categorias de classificação do IBGE: branca (49,0%), preta (1,4%), parda (13,6%), amarela (1,5%) e indígena (0,4%), além dos termos “morena” (21,7%, incluindo variantes “morena clara” e “morena escura”) e “negra” (7,8%). Entre os estados, o Amazonas se destacou com o menor percentual de respostas para cor “branca” (16,2%) e a maior proporção de uso do termo “morena” (49,2%). Já o maior percentual da resposta “negra” foi no Distrito Federal (10,9%), onde as respostas “branca” e “parda” tiveram proporções iguais (29,5%).
Comparando a classificação de cor ou raça do entrevistado feita por ele mesmo (autoclassificação) e a atribuída pelo entrevistador (heteroclassificação), observou-se um nível de consistência significativamente alto, com exceção para o caso da categoria “morena”, mais usada pelo entrevistado (21,7%) do que pelo entrevistador (9,3%). Essa discordância foi maior na Paraíba, onde 45,7% dos entrevistados se autoclassificam como “morenos”, mas o termo só foi usado pelos entrevistadores em 4,3% dos casos.
Cor da pele é dimensão mais citada para definir cor ou raça
Entre as dimensões de identificação oferecidas aos entrevistados, em relação à auto-identificação de cor ou raça, a que mais aparece é a “cor da pele”, citada por 74% dos entrevistados. Seguem “origem familiar” (62%) e “traços físicos” (54%). Já na identificação das “pessoas em geral”, a dimensão mais citada foi a “cor da pele” (82,3% dos entrevistados), seguida de “traços físicos (cabelo, boca, nariz, etc.)” (57,7%) e “origem familiar, antepassados” (47,6%).
Pesquisa abordou diversos elementos de identificação
As entrevistas foram feitas com uma pessoa de 15 anos ou mais de idade por domicílio, selecionada aleatoriamente. A pesquisa abordou a identificação do entrevistado a partir de uma pergunta aberta (autoclassificação), sondando algumas dimensões que compõem a identificação de cor ou raça para “as pessoas em geral” e para o próprio entrevistado (cultura, traços físicos, origem familiar, cor da pele etc.). Também perguntou sobre a origem familiar (africana, européia, do Oriente Médio, entre outras) e se o entrevistado se reconhecia com uma série de alternativas de identificação (afro-descendente, indígena, amarelo, negro, branco, preto e pardo), além de levantar informações sobre educação e inserção ocupacional do pai e da mãe da pessoa entrevistada. Muitas perguntas permitiram respostas múltiplas. Em paralelo à autoclassificação, o entrevistador atribuía uma cor ou raça ao entrevistado com uma pergunta aberta (heteroclassificação). Finalmente, a pesquisa abordou a percepção da influência da cor ou raça em alguns espaços da vida social.
Fonte: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1933&id_pagina=1&titulo=IBGE-divulga-resultados-de-estudo-sobre-cor-ou-raca

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Classe média e escola capitalista

Classe média e escola capitalista
Décio Saes*[1]

Este artigo focaliza uma das dimensões essenciais do processo educacional das sociedades capitalistas: a conexão entre classe média e educação pública. Mais especificamente, ele se destina a caracterizar a posição da classe média diante da escola pública, bem como a analisar o lugar ocupado pela classe média dentro dessa instituição. Seria a classe média a força dirigente no funcionamento do sistema educacional público? Ou é a classe capitalista quem exerce um estrito controle sobre esse sistema, buscando compatibilizar a educação de massas e os interesses do capital?
Muitas das idéias expostas neste artigo já estão presentes nos melhores trabalhos de análise sociológica do processo educacional das sociedades capitalistas , como os de Bourdieu & Passeron, de Baudelot & Establet e de Georges Snyders.
Porém, o esquema teórico geral aqui proposto não coincide inteiramente com o esquema teórico proposto por qualquer um desses autores, embora elementos parciais presentes nas suas análises tenham sido aqui reaproveitados. A possibilidade teórica de estabelecimento de algumas distinções que façam avançar a análise da relação entre o sistema de educação pública e a classe média, nas sociedades capitalistas, motivou-nos a escrever este texto.

As classes fundamentais (capitalistas, trabalhadores manuais) e a educação

Os membros individuais de qualquer classe social buscam normalmente algum tipo de educação para os seus filhos: escolar ou extra-escolar, longa ou curta, formal ou informal etc. Sem alguma forma de educação, ninguém se insere na prática social (econômica, familiar, política etc.). Por isso, não há diferença entre os indivíduos pertencentes às diferentes classes sociais quanto ao objetivo de obter alguma educação para os seus filhos. Isso não significa, entretanto, que todas as classes sociais defendem a educação de todos os membros da sociedade e empunham permanentemente a bandeira da educação universal, pelo menos no nível elementar ou básico. Aparentemente, todos são favoráveis a essa meta; a prática social evidencia, porém, que tal bandeira é um dos maiores mitos da sociedade capitalista e, como tal, indispensável à reprodução desse modelo de sociedade. Tomemos a classe capitalista. Tal classe social, que se subdivide em frações (industrial, bancária, comercial), tem, no seu conjunto, interesse econômico em que à sua mão de obra se assegure acesso à instrução elementar. Isso não a converte, entretanto, em adepta da educação básica universal.
A adoção desse princípio pelo Estado implicaria propiciar educação elementar gratuita e obrigatória para todos, inclusive para as classes trabalhadoras. Ora, a classe capitalista teme que a dinâmica da vida escolar leve os seus trabalhadores a adquirirem mais conhecimentos que aqueles estritamente necessários para a sua inserção, em caráter subordinado, no processo de trabalho (industrial, comercial, bancário). Ou seja, a classe capitalista teme que a escola, obedecendo a um princípio constitucional ao invés de trabalhar por encomenda direta do capital, crie um amplo contingente de “sobrequalificados”, que se converterão em fator de atrito dentro do processo de trabalho e exercerão espontaneamente pressão a favor da  redefinição dos seus objetivos gerais. É esse o impasse, como nos mostra Vitor Paro1, em que vive a classe capitalista no terreno educacional: ela não quer que sua mão de obra tenha “educação de menos”, mas também não aceita que esta receba “educação demais”.
Além do mais, o interesse político leva a classe capitalista a temer a educação das classes trabalhadoras, pelos seus efeitos potencialmente politizadores. O acesso da mão de obra a saberes excessivos com relação às necessidades econômicas do capital poderia subverter as finalidades da instrução elementar, desviando-a da função de manter a ordem social vigente. A combinação das hesitações capitalistas quanto à formação de sua mão de obra com os temores capitalistas com relação ao potencial subversivo de qualquer conhecimento indica que dificilmente o capital desempenhará, através de qualquer uma de suas frações (industrial, comercial, bancária), o papel de força principal na instauração do ensino elementar obrigatório e gratuito. A classe capitalista tende, no terreno da educação das classes trabalhadoras, a defender as iniciativas filantrópicas privadas (como as escolas primárias geridas pelas próprias indústrias no início do capitalismo ou os programas empresariais de alfabetização de adultos) e a resistir (de modo mais ou menos explícito, 1 Ver Vitor Henrique Paro, Administração escolar / introdução crítica, Ed. Cortez, SP, 2002, 11a edição, especialmente o capítulo III, “Transformação social e educação escolar”. conforme a conjuntura) ao cumprimento do princípio, imposto por alguma outra força social, da educação elementar obrigatória e gratuita.
Analisemos agora as classes trabalhadoras manuais. À primeira vista, o interesse objetivo dessas classes sociais só pode ser a universalização da educação de base, seja para proporcionar às suas crianças oportunidades de ascensão individual na escala social, seja para lhes propiciar o acesso aos conhecimentos indispensáveis à organização da luta contra as classes exploradoras. Na prática, porém, as coisas não são tão simples. Se, na maior parte das sociedades capitalistas, a educação elementar acabou se convertendo numa obrigação, constitucionalmente consagrada, para os pais e para o Estado, isso não resultou apenas da resistência da classe capitalista à generalização da educação de base, mas também à reticência das classes trabalhadoras manuais com relação à conveniência prática da educação escolar para os seus filhos. As classes trabalhadoras manuais buscam, como todas as classes sociais, alguma forma de educação para os seus filhos. Mas essa busca não a leva a uma valorização incondicional e absoluta da educação escolar de base. Para as famílias de trabalhadores manuais, as crianças constituem mão de obra suscetível de ser colocada, desde cedo, a serviço da reprodução material da unidade familiar. Analisada por esse ângulo, a entrada das crianças no ensino fundamental representa um desvio de energia que poderia ser empregada na esfera do trabalho e, portanto, indiretamente, um empobrecimento da família trabalhadora. Isso explica, de resto, que a evasão escolar das crianças pobres, como conseqüência do fracasso escolar, seja freqüentemente encarada como uma fatalidade, e não como um acontecimento revoltante, pelos pais desses alunos. Talvez pela mesma razão muitas famílias de trabalhadores manuais promovem o retardamento da entrada dos seus filhos no universo escolar, argumentando que lhes faltaria a maturidade necessária para tanto, presente apenas, desde cedo, nos filhos de pais ricos. Conforme Luiz Antonio Cunha, as famílias de trabalhadores manuais tendem a considerar que os custos indiretos da escolarização são muito elevados ; ou por outra, a considerar muito elevado o sacrifício de renda familiar provocado pela escolarização dos filhos[2].
Em suma: o fato de o acesso à educação de base permitir a alguns membros individuais das classes trabalhadoras manuais a ascensão na escala social não é suficiente para induzir essas classes sociais, no seu conjunto, a pensar que a troca de uma elevação da renda familiar por um incremento na taxa de escolarização da unidade familiar corresponde aos seus interesses econômicos de curto prazo. Já do ponto de vista estritamente político, dificilmente as classes trabalhadoras manuais valorizariam em si mesma a universalização da educação de base. Isto é, dificilmente encarariam a universalização da educação de base como uma arma decisiva na luta política contra as classes exploradoras e pela construção de uma organização política independente. De resto, no caso de passarem a politizar as suas motivações educacionais, as classes trabalhadoras manuais tenderiam predominantemente a encarar não o ensino obrigatório e gratuito e sim a auto-educação proletária como a melhor arma ideológica na luta contra a exploração do trabalho[3]3.
A classe média e a educação
Chegamos finalmente à classe média. Esse grupo social congrega todos os
trabalhadores, assalariados ou não, que, além de desempenharem algum trabalho apenas indiretamente produtivo (quando não absolutamente improdutivo), autorepresentam-se, no plano ideológico, como trabalhadores não-manuais, distintos dos trabalhadores manuais e superiores a eles nos planos profissional e social. A constituição da classe média no plano ideológico não é um processo simples, que possa ser identificado com a emergência de uma consciência de si entre os trabalhadores intelectuais propriamente ditos: isto é, aqueles trabalhadores não-manuais que exercem atividades mentais criadoras e inovadoras. Na verdade, a classe média passa a atuar concretamente como um grupo social específico quando os trabalhadores intelectuais na acepção estrita da palavra se reúnem ideologicamente com os trabalhadores cuja atividade é dominantemente mental, mas tem um caráter reiterativo, e não criativo ou inovador. Isso ocorre quando esses dois segmentos de trabalhadores não-manuais entendem que é possível usar, cada um a seu modo (o primeiro segmento valorizando, sobretudo, a criatividade, o segundo grupo limitando-se a valorizar a ausência de esforço físico de monta), o prestígio social do “trabalho intelectual”, agora definido de modo amplo e impreciso, para afirmar a sua superioridade econômica e social com relação às classes trabalhadoras manuais. Pode-se deduzir, do que colocamos acima, que não é simples estabelecer uma sociografia precisa da classe média das sociedades capitalistas. Cada fase da evolução do capitalismo, com o seu patamar específico de desenvolvimento das forças produtivas, redefine a fronteira entre trabalho manual e trabalho não-manual, “proletarizando” algumas profissões e “nobilitando” outras profissões. Em qualquer caso, persiste o fato de que, a cada momento do capitalismo, aqueles que exercem uma atividade predominantemente mental, seja ela de caráter criativo ou reiterativo, tendem a invocar o prestígio social do “trabalho intelectual” para reivindicarem uma situação econômica e social superior à das classes trabalhadoras manuais. É esse conjunto social complexo que desempenha o papel dirigente na luta pela instauração, nas diferentes sociedades capitalistas, de um sistema de educação pública. Uma pesquisa histórica cuidadosa nos revelará que, nas diferentes sociedades capitalistas, a classe capitalista (para não falarmos da classe dominante agrária, de cunho pré-capitalista) se mostrará, desde o século XIX, reticente com relação à instauração do ensino público, apoiando as escolas confessionais e as iniciativas educacionais de cunho filantrópico, além de incentivar a expansão, para uso próprio, do ensino privado de alto nível. E as classes trabalhadoras manuais, premidas pelas necessidades materiais, verão com reservas as políticas educacionais que cerceiem a sua liberdade de colocar, a qualquer momento, os seus filhos a serviço da reprodução material da família. Certas organizações políticas das classes  trabalhadoras, mormente as de orientação anarquista, adotarão uma postura favorável à educação das massas e, ao mesmo tempo contrária ao ensino público ; ou seja, elas proporão a auto-educação proletária como forma de evitar a incorporação das crianças de origem popular à escola pública, ideológica e politicamente controlada pelo Estado burguês. Resta, portanto, à classe média o papel histórico de vanguarda na luta pela instauração de um sistema de educação pública mas sociedades capitalistas.Durante a Terceira República Francesa (1871 – 1940), são os movimentos que representam ideologicamente a classe média e nela encontram sua base social de apoio a força política que sustenta o projeto de instauração do ensino público, gratuito e obrigatório, cuja função social seria a de propiciar não  só educação para todos mas, mais que tudo, a mesma educação para todos. É o caso, por exemplo, dos comitês radicais das décadas de 1870 e 1880, onde se sobressaíam personalidades como Gambetta e Clemenceau ; bem como da Liga Francesa do Ensino que, tendo sido fundada em 1866, já contava com 60 mil membros em 1877. E os sucessivos governos aptos a traduzir os desígnios reformistas (e sobretudo a aspiração à reforma educacional) da classe média implementarão políticas destinadas à implantação, consolidação e extensão do ensino público, gratuito e obrigatório, entendido como o instrumento fundamental da instauração de uma educação igual para todos : os governos “republicanos moderados” de Jules Ferry (década de 1880) e de Waldeck-Rousseau (década de 1900) e os governos “radicais” das primeiras décadas do século XX[4] .Na Espanha, uma vez proclamada a república, são sobretudo os partidos radicais (representantes ideológicos e políticos da classe média) que empunham a bandeira do ensino público, gratuito e obrigatório, contra os desígnios educacionais da Igreja e das classes dominantes[5]. No Brasil do século XX, o desenvolvimento da classe média –um dos aspectos centrais da primeira fase do processo brasileiro de transição para o capitalismo – desaguará na eclosão da Revolução de 1930 (que foi, em parte,uma revolução de classe média) e, a seguir, na deflagração da luta dos seus representantes ideológicos (escolanovistas, nacionalistas, progressistas, etc) a favor da escola pública, atacada de modo mais ou menos aberto pelos representantes - clericais ou meramente privatistas – das classes dominantes. Mas por que a classe média luta, desde o século XIX e em vários países capitalistas, pela implantação de um sistema de educação pública? Para respondermos a essa pergunta, devemos preliminarmente esclarecer por qual sistema de educação pública a classe média luta. Seguramente, ela não se mobiliza com vistas à instauração de um sistema de educação pública onde o ensino seja pago (o ensino público pago já existiu e poderá voltar a existir) e facultativo (difícil de se concretizar na prática, dada a pressão capitalista e burocrática para que não se desperdicem recursos orçamentários, mas teoricamente viável). Na verdade, o sistema de educação pública que corresponde às aspirações educacionais da classe média é aquele em que a educação elementar é obrigatória e gratuita. Por que a classe média espera que a educação elementar seja pública, gratuita e obrigatória? A resposta a essa questão não é nada simples, ao contrário do que parecem sugerir muitos autores que abordam apenas de passagem a questão dos ideais educacionais da classe média, e que justamente por isso acabam, compreensivelmente, recorrendo, na análise sociológica dos processos educacionais, a idéias tradicionais sobre a classe média, de livre circulação nos textos de sociologia da educação. A classe média não defende um ensino elementar público, obrigatório e gratuito por pensar que esse modelo de prestação de serviços educacionais assegurará uma boa educação elementar aos seus próprios filhos. Tal classe social não tem necessidade, para inscrever os seus filhos na escola elementar e garantir que eles a freqüentarão regularmente, de ser compelida a tanto pelo Estado. Na verdade, a classe média é a única classe social cujos membros consideram que a reprodução de sua situação econômica e social através dos filhos depende essencialmente da educação escolar, pois é esta que permite no mínimo, à geração seguinte, manter a condição de trabalhadores não – manuais, superiores, dentro da hierarquia do trabalho, aos trabalhadores manuais. O ensino não precisa, portanto, ser obrigatório para que os pais de classe média levem os seus filhos à escola elementar; eles o fazem espontaneamente, pois a escola tem um papel central na própria reprodução de uma classe social definida pelo desempenho de trabalho predominantemente não-manual. Além do mais, a classe média não preza o ensino elementar público e gratuito por pensar que um tal modelo de sistema educacional seja indispensável para a educação de base dos seus filhos. Em diferentes fases do capitalismo e em diferentes países capitalistas, uma boa parte da classe média inscreve os seus filhos em estabelecimentos escolares privados, por estar preocupada, antes de tudo, com a qualidade do ensino; nesse caso, mostra-se disposta a renunciar à gratuidade do ensino e a se submeter a um modelo de escola orientado pelo objetivo de busca do lucro. E mesmo pais de classe média que manifestam abertamente seu apreço pela escola pública inscrevem muitas vezes os seus próprios filhos em escolas particulares, por suporem que o que está em jogo, nessa escolha, é antes de mais nada a qualidade do ensino elementar a ser ministrado aos seu filhos. Pesquisa recente de João Batista Araújo e Simon Schwartzman indica que quase 70% dos professores da rede municipal pesquisada escolheriam, se pudessem, uma escola particular para os seus filhos; e que quase 60% dos professores da rede estadual pesquisada fariam uma escolha similar. Ao mesmo tempo, esses professores avaliam de modo positivo o desempenho e, conseqüentemente, a própria existência da escola pública[6] . E reportagem recente traz interessantes depoimentos de alguns professores universitários, notórios defensores do ensino público, gratuito e obrigatório em todos os níveis. Discorrendo sobre a educação dos seus filhos, tais professores esclarecem  que optaram por inscrevê-los em estabelecimentos escolares particulares, e apresentam invariavelmente a mesma razão para tal escolha: a qualidade do ensino[7]. Excluída a hipótese de a classe média se ver, antes de mais nada, como clientela da escola elementar pública, gratuita e obrigatória, coloca-se a pergunta : qual é, então, a importância da implantação desse modelo de escola para a classe média?  Na verdade, a instauração do ensino elementar público, obrigatório e gratuito é a via institucional fundamental para a difusão, por toda a sociedade capitalista, do Mito da Escola Única, arma fundamental da luta ideológica que a classe média trava com vistas a promover a sua valorização econômica e social. A Escola Única pode ser definida como o ideal educacional – ascendente nos países capitalistas centrais desde fins do século XIX – consistente em promover a coexistência, dentro de um mesmo espaço escolar, entre as diferentes classes sociais (burguesia, classe média, trabalhadores manuais), com vistas a ministrar-lhes um ensino igual e a proporcionar-lhes iguais oportunidades de sucesso profissional, não obstante as diferenças de aptidão individual (que acabarão tendo influência na definição do
destino profissional de cada um). A instauração do ensino elementar público, obrigatório e gratuito - e não, do ensino privado, facultativo e pago – é a via institucional fundamental para a difusão social do Mito da Escola única pelo fato de que dificilmente um sistema de escolas particulares poderia, ainda que rigorosamente regulamentado e controlado pelo Estado capitalista, difundir socialmente a impressão de que um mesmo ensino é ministrado a todas as classes sociais e de que tal ensino está propiciando iguais oportunidades de sucesso profissional a todos, independentemente de sua condição de classe. O ensino privado é ensino pago, e propicia à sua clientela uma qualidade de ensino que varia conforme o preço estipulado[8], do qual dependem os salários dos professores, os equipamentos escolares, as atividades culturais, etc. É pouco provável que um Estado capitalista encontrasse condições políticas favoráveis à implantação de um sistema de subsídios às diferentes escolas particulares que alimentasse a impressão de que a qualidade do ensino seria a mesma em toda a parte. Assim, é por perseguir o ideal da Escola Única que a classe média luta pela instauração da escola elementar pública, gratuita e obrigatória. Baudelot e Establet já demonstraram, de modo sistemático, que a Escola única é apenas a aparência, socialmente eficaz (pois produz efeitos ideológicos concretos), assumida pela escola pública ; no seu funcionamento concreto, essa instituição está cindida em redes diversas de escolarização, destinadas a diferentes classes sociais[9]. Mas é justamente a criação dessa aparência que a classe média persegue, pois dela depende a sua valorização econômica e social como classe social. A meta da construção da forma – Escola única está, portanto, diretamente conectada a determinados interesses de classe ; o que é diferente de se afirmar que a forma-Escola Única é fundamentalmente vista pela classe média como instrumento necessário à ascensão dos seus filhos na escala social. A rigor, a classe média não precisa da escola pública, enquanto espaço institucional onde podem coexistir todas as classes sociais, para promover a ascensão individual os seus filhos na escala social. Muito pelo contrário: inscrevê-los numa escola particular, onde o alto preço da mensalidade não só garante a qualidade do ensino como também elimina uma parte dos futuros concorrentes, delineia-se como a estratégia mais adequada para a consecução desse objetivo. É um fato que o culto à meritocracia figura na fachada do discurso da classe média sobre a escola pública. Analisada essa fachada de um ponto de vista sociológico, fica evidente que a opinião de que o sucesso profissional, econômico e social deve bafejar exclusivamente aqueles que revelarem capacidade para tanto, independentemente de sua condição de classe, não pode ser qualificada como a codificação dos verdadeiros interesses da classe média. Essa classe social, enquanto grupo social específico, não pode ter interesse em que as chances, na vida econômica, profissional e social, das crianças potencialmente capazes das classes trabalhadoras manuais sejam aumentadas, pois isso significaria a diminuição, em termos relativos, das chances dos seus próprios filhos. Na verdade, o culto à meritocracia é apenas uma ideologia de segundo grau ; vale dizer, uma argumentação que presta cobertura ao compromisso orgânico da classe média com o seu verdadeiro interesse de classe. Esse interesse consiste na promoção da valorização econômica e social dos trabalhadores não – manuais relativamente aos trabalhadores manuais; promoção essa que não está garantida de modo permanente, definitivo e estável pelo mero fenômeno da divisão capitalista do trabalho, isto é, pela separação recorrente do trabalho de concepção/direção com relação ao trabalho de execução. Aqui encontramos a ideologia orgânica da classe média: este grupo precisa provar ao conjunto da sociedade, e mais especificamente à classe capitalista, que os detentores dos postos de trabalhador não-manual, dentro da divisão capitalista do trabalho, ocupam esses lugares por terem provado - na vida escolar, em provas, em concursos etc. – que são os mais competentes para tanto.
Neste ponto de nossa argumentação, temos de nos defrontar com a seguinte pergunta: a valorização econômica e social do trabalhador não-manual relativamente ao trabalhador manual não é um fato natural dentro da sociedade capitalista? Tal valorização não decorre automaticamente da divisão capitalista do trabalho? Por que a classe média deveria se envolver numa luta ideológica ativa a fim de viabilizá-la ? Para respondermos a essa pergunta, devemos superar toda visão estática do desenvolvimento do capitalismo; ou seja, toda visão que exclua da dinâmica interna do modo de produção capitalista as lutas sociais, encarando tais lutas exclusivamente do ponto de vista de sua contribuição à superação do modelo capitalista de sociedade. Na realidade, o mero fato da vigência da divisão capitalista do trabalho – e, mais especificamente, da separação do trabalho de concepção/direção relativamente ao trabalho de execução - não basta para compelir a classe capitalista a valorizar permanentemente - e de modo crescente – os trabalhadores não manuais relativamente aos trabalhadores manuais. Na história das sociedades de classes, as classes dominantes mostraram, em geral, apreço pelo trabalho intelectual no sentido estrito (criação, inovação). O respeito ao trabalho intelectual (Artes, Ciências, Literatura, etc.) não as levou, porém, a respeitar a figura do trabalhador intelectual; este foi freqüentemente confundido, na mentalidade das classes dominantes, com o empregado doméstico. O capitalismo só alterou superficialmente essa postura. Como bem indicam Bourdieu & Passeron, no terreno da avaliação do trabalho intelectual a burguesia combate a ideologia pequeno-burguesa do esforço pessoal com a ideologia do dom e da graça[10]10. Esta apologia da vocação natural implica subtrair ao trabalhador intelectual a responsabilidade pela construção de sua capacidade criativa e inovadora. A ideologia do dom pode fundamentar a prática do mecenato ; ela não tem porém como levar a um processo regular de valorização econômica e social do trabalhador intelectual relativamente ao trabalhador manual. É preciso, contudo, especificar mais a análise deste ponto. No capitalismo, a divisão do trabalho se intensifica em diferentes planos da vida econômico-social: a) o aparelho de Estado se separa radicalmente do aparelho produtivo; b) as esferas da circulação e da distribuição se diferenciam claramente da esfera da produção; c) no processo de trabalho, o saber do produtor direto é expropriado em prol dos agentes que organizam o processo de produção. Forma-se assim, ao lado do grupo restrito dos intelectuais, uma massa de trabalhadores não-manuais, cuja superioridade econômica e social com relação aos trabalhadores manuais não é reconhecida de modo natural e espontâneo pela classe capitalista. Assim, os trabalhadores não manuais deverão deflagrar uma luta ideológica permanente com vistas à construção de uma hierarquia do trabalho e à promoção ininterrupta da melhoria de sua posição relativa dentro dessa hierarquia. Essa luta não tem fim dentro das sociedades capitalistas, porque os trabalhadores manuais tendem regularmente a lutar pela diminuição da grade salarial e pela compensação material crescente às desvantagens crônicas (riscos à vida e à saúde, desgaste físico e psicológico intenso, etc.) do trabalho braçal, o que provoca a deterioração da posição relativa dos trabalhadores não-manuais dentro da hierarquia do trabalho. Note-se que, nessa luta, os trabalhadores não-manuais tendem a recorrer, por empréstimo, ao prestígio social do “trabalho intelectual”, que efetivamente não desempenham em sua acepção estrita (criação, inovação); em troca, eles emprestam a sua massa numérica ao grupo restrito dos intelectuais, que assim potenciam a sua ação em prol da superação do mecenato e da sua inserção em termos vantajosos na hierarquia do trabalho.
É incorreto supor que a tendência à valorização econômica e social dos trabalhadores não-manuais relativamente aos trabalhadores manuais tenha sido um resultado imediato e automático da vitória da Revolução política burguesa e da instauração da grande indústria moderna. Na fase inicial da transição para o capitalismo, as classes dominantes estabelecem com os trabalhadores não-manuais uma relação de favor, procurando deixar claro que o lugar por estes preenchido na estrutura ocupacional (funcionários, profissionais liberais, professores, etc.) resulta de uma ajuda pessoal, e não, de qualquer demonstração individual de competência. Para promover a sua valorização econômica e social, a classe média terá de lutar contra a relação de favor, que aparentemente beneficia os seus membros, mas que na verdade os condena a uma permanente dependência pessoal com relação às classes dominantes. E é importante notar que a constituição da classe média no plano ideológico, durante o processo de transição para o capitalismo, não se dá de um momento para outro. É possível que, numa primeira fase, o ímpeto de se valorizar econômica e socialmente (isto é, de definir o seu interesse específico como interesse de classe) e o apelo a uma ideologia de segundo grau - o culto à meritocracia – como forma de ocultar da sociedade a verdadeira natureza desse interesse se combinem à postura de submissão aos favores (indicações, nomeações, transmissão de clientelas cativas etc.) concedidos pelas classes sociais que controlam o acesso aos melhores lugares da estrutura econômica e da estrutura jurídico-política: as classes dominantes. Surge assim, no seio da classe média, um discurso misto, que  articula de modo complexo o culto à competência individual e o reconhecimento da legitimidade do favor: uma espécie de defesa do “apadrinhamento esclarecido”, análogo à apologia iluminista do “despotismo esclarecido”.Encontramos na história da Primeira República um bom exemplo dessa articulação de ideologias diversas na prática de uma mesma classe social. Nesse período, alguns altos funcionários pensavam que o filhotismo praticado no Estado de São Paulo pela comissão
executiva do PRP (controlada pelo grande capital comercial e bancário, ligado à exportação de café) acabava fazendo justiça, por ser altamente criterioso, aos mais competentes. Nessa ótica, o favoritismo e o nepotismo só seriam fenômenos negativos quando viabilizassem o acesso de incapazes aos mais altos postos da estrutura ocupacional. Voltemos agora à questão da conexão entre a escola pública e o interesse da classe média nas sociedades capitalistas. Para se valorizar econômica e socialmente, a classe média precisa da forma-Escola única e, conseqüentemente, da configuração institucional que a viabiliza: a escola elementar pública, gratuita e obrigatória. Como nesse espaço institucional coexistem todas as classes sociais (classe capitalista, classe média, classes trabalhadoras manuais), ele se torna o lugar de uma competição ilusória entre capacidades individuais, cuja função ideológica é sugerir que aqueles indivíduos situados no topo da hierarquia do trabalho lá se encontram por terem provado, no plano da vida escolar (exames, provas, testes etc.), serem mais capazes que os indivíduos situados na base da hierarquia do trabalho. Essa competição é ilusória, pois os recursos culturais com que contam os competidores (classe média, classes trabalhadoras manuais) são, desde o início da vida escolar, desiguais; e vão dar origem portanto a diferentes padrões de desempenho escolar, bem como a diferentes trajetórias escolares (curta, longa). Mas essa aparência de competição deve ser mantida, pois a classe média precisa de tal simulacro para se valorizar econômica e socialmente com relação aos trabalhadores manuais. Entendese, assim, porque é a classe média - e não, a classe capitalista ou as classes trabalhadoras manuais - o sustentáculo social da escola pública na sociedade capitalista, mesmo que ela não seja a sua principal clientela. A ideologia do mérito individual não pode, por si só, proclamar a superioridade dos trabalhadores não-manuais dentro da hierarquia capitalista do trabalho; por isso mesmo, ela não pode ser definida como a ideologia orgânica da classe média. O culto à meritocracia tem portanto um papel secundário – embora efetivo - na vida ideológica da classe média. Mais especificamente, ele pode funcionar  como uma ideologia de segundo grau; isto é, como uma cobertura ideológica para a mera defesa do verdadeiro interesse da classe média. Tal cobertura se destina a iludir as outras classes sociais: o contendor da classe média dentro da hierarquia do trabalho (os trabalhadores manuais) e o agente social de quem se espera uma intervenção, sob pressão, na hierarquia do trabalho (a classe capitalista). Mas ela se destina também a iludir a própria classe média, convencendo-a da “nobreza” das suas motivações. O apelo aberto e explícito à ideologia do mérito individual pode ocorrer nos espaços institucionais onde a vitória da classe média nos processos de aferição de competência está assegurada de antemão. Nessas situações, os termos em que estão vazados os dois discursos se mostram diferentes; mas tal diferença não resulta numa contradição entre as funções de um e de outro. Ao contrário, tais funções se revelam complementares: a defesa de uma hierarquização do trabalho favorável aos trabalhadores não-manuais exprime diretamente o interesse da classe média; a ideologia do mérito individual cria um disfarce, socialmente eficaz, para a defesa pura e simples do interesse de classe.
Ideologia do mérito individual e ideologia do dom

Compreende-se, portanto, que a ideologia do mérito individual circule, devidamente comandada e vigiada pela ideologia orgânica da classe média, na escola pública. Os professores e a administração escolar podem defender o princípio da competência individual – contra princípios como o do nascimento, o da riqueza etc., – desde que não revelem à clientela escolar que a aferição de competência no espaço escolar vai premiar apenas a classe social que dispuser de recursos culturais para tanto (e apenas a classe média dispõe de tais recursos, pois o ensino é projeta do para se adaptar ao universo cultural e ideológico dessa classe social). Docentes e diretores podem lamentar publicamente que os alunos pobres careçam das condições materiais mínimas necessárias à obtenção de um bom desempenho escolar. Todavia, eles não podem - a menos que queiram praticar um suicídio profissional – revelar o segredo fundamental da escola pública capitalista: o fato de que a própria estrutura do ensino condena os filhos das classes trabalhadoras manuais ao fracasso escolar. Bourdieu e Passeron lançam, entretanto, mais um desafio à análise da ideologia imperante no sistema escolar público. Para os dois autores, a ideologia burguesa da graça e do dom disputa, em igualdade de condições, o espaço escolar público com a ideologia pequeno-burguesa do mérito individual[11]. E essa concorrência entre duas ideologias de classe diversas se exprime concretamente através da coexistência competitiva, no terreno da prática docente, entre carisma e competência intelectual. As observações dos dois autores sobre tal concorrência se referem, sobretudo, ao sistema do ensino superior. De qualquer modo, é possível extrair, de suas formulações, algumas conseqüências para a análise da educação elementar pública. É um fato que a ideologia do dom e da graça penetra no espaço escolar, assim como ela pode penetrar em outros espaços institucionais, como a Igreja, a empresa, o exército etc. Todavia, ela jamais pode se tornar dominante ou mesmo se equiparar à ideologia do mérito individual dentro da escola pública, sob pena de desestruturar todo o universo escolar, voltado essencialmente para a aferição de competência e não para a consagração de dons cuja aquisição parece se desvincular de qualquer esforço pessoal. E também é um fato que a ideologia do dom é, para a burguesia, um dispositivo mais cômodo que a ideologia do mérito individual, pois esta se define como a expressão (de segundo grau) da situação econômico-social da classe média. Porém, a classe média também pode recorrer, em certas circunstâncias, à ideologia do dom dentro do espaço escolar. Ela o faz quando se trata de justificar ou mesmo de estimular desempenhos excepcionais (isto é, acima da média de classe). Tais desempenhos podem indiretamente colocar em questão a explicação oficial das diferenças de desempenho (estas se deveriam a diferentes níveis de esforço pessoal), e lançar dúvidas gerais sobre a aplicabilidade desse tipo de explicação até mesmo aos desempenhos considerados “normais”. A  recorrer à história de vida dos indivíduos excepcionais, onde pode se evidenciar o elevado peso de recursos culturais intensa e precocemente utilizados na educação de alguém[12],o professor de classe média pode preferir uma explicação extra-natural para a emergência de talentos excepcionais. Desse modo, ele evitará que a ideologia do mérito individual seja atacada dentro do próprio universo escolar. Portanto, a ideologia do dom, embora se configure como arma preferencial da burguesia na desvalorização econômica e social do trabalho em geral, pode funcionar como arma de reserva da classe média, a ser acionada na explicação de situações excepcionais, onde se evidencia, mais que nas situações normais, a importância da posse de recursos culturais prévios para uma trajetória pessoal bem sucedida. Quando, na prática ideológica da classe média, a ideologia do mérito individual é colocada em perigo, a ideologia do dom deve provisoriamente tomar o seu lugar.

De Bourdieu & Passeron a Baudelot & Establet.

Não poderíamos ter apresentado esta reflexão teórica sobre a relação entre classe média e escola pública se não tivéssemos passado previamente pelas formulações de Bourdieu & Passeron e de Baudelot & Establet acerca desse tema. E talvez tivesse sido conveniente começar este trabalho evocando a posição teórica geral de cada uma das duas duplas de autores sobre a conexão entre classe média e sistema educacional. Cremos, entretanto, que essa evocação merece um trabalho à parte, onde os múltiplos aspectos do tratamento dado pelas duas duplas de autores a esse tema sejam analisados de forma minuciosa. Por isso, limitar-nos-emos aqui a cotejar nossa caracterização da presença da ideologia da classe média no universo escolar público com o tratamento que Bourdieu & Passeron e Baudelot & Establet dão, respectivamente, a essa questão. Em La reproduction, Bourdieu & Passeron não propõem um conceito geral de classe média, mas aludem sucessivamente às frações superiores da classe média (alta burocracia escolar, conectada na prática à alta burocracia estatal ; professorado do ensino superior; “frações intelectualizadas da classe dominante”) e às frações
inferiores da classe média (professorado primário, empregados dos serviços etc.). Se as primeiras têm um capital cultural a transmitir aos seus filhos, as segundas só podem lhes legar uma boa vontade cultural. Ambos os subconjuntos investem os seus esforços na educação escolar dos seus filhos, por pensarem que a escola é o melhor caminho para a conquista dos melhores postos dentro da sociedade industrial moderna. O livro, no seu conjunto, transmite-nos a impressão de que, para a classe média, a busca do sucesso individual é a melhor forma de se comportar como classe social; e de que, portanto, a ideologia do mérito individual é a principal forma de expressão ideológica da classe média. É verdade que os dois autores apontam a conexão existente entre o sistema escolar e as hierarquias sociais. Afirmam eles: “Assim, por exemplo, o culto – puramente escolar na aparência – da hierarquia contribui sempre para a defesa e a legitimação das hierarquias sociais, na medida em que as hierarquias escolares, seja a hierarquia dos graus e títulos, seja a hierarquia dos estabelecimentos e das disciplinas, devem sempre algo às hierarquias sociais que elas tendem a re-produzir (no duplo sentido do termo)”[13]. Os dois autores, entretanto, não tiram nenhuma conseqüência explícita dessa formulação no que diz respeito à caracterização da ideologia orgânica da classe média. Mais especificamente: Bourdieu & Passeron parecem subestimar o fato de que a disposição da classe média a melhorar a sua posição relativa, como grupo social, dentro da hierarquia do trabalho, subordina e disciplina o apelo da classe média à ideologia do mérito individual, dentro do espaço escolar público.
Baudelot e Establet atribuem um importante papel ideológico à pequena burguesia dentro da escola pública das sociedades capitalistas. A versão da ideologia burguesa propagada entre os filhos de trabalhadores manuais, dentro da escola pública, não é uma versão “pura”, e sim uma versão pequeno-burguesa; vale dizer, uma adaptação especificamente pequeno-burguesa do objetivo estratégico da burguesia, consistente em preservar a ordem social capitalista, fundada na propriedade privada dos meios de produção e na exploração do trabalho. A despeito da importância que assume no texto dos dois autores a reflexão sobre a divisão capitalista do trabalho e sobre a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, a versão pequeno-burguesa da ideologia burguesa é surpreendentemente identificada com a apologia do mérito pessoal, e não com o empenho em melhorar a posição relativa de todo o conjunto dos trabalhadores não-manuais dentro da hierarquia do trabalho. A classe média aparece assim como um grupo social cuja única forma de comportamento típico é a busca da satisfação de interesses estritamente individuais. Mas tal comportamento seria um verdadeiro comportamento de classe? Ou ele equivaleria a uma possibilidade aberta aos indivíduos pertencentes a todas as classes sociais?
Como se pode notar, tanto Bourdieu & Passeron quanto Baudelot & Establet tendem a qualificar a defesa da melhoria do status pessoal dos indivíduos talentosos como a verdadeira ideologia da classe média. Ao desconsiderar que a classe média, como grupo social, luta permanentemente pela elevação do seu status posicional, os dois pares de autores evidenciam não estarem, eles próprios, imunes aos efeitos da operação de ocultamento que põe em conexão a ideologia do mérito individual (entidade ocultante) e a concepção prática “pequeno-burguesa” de hierarquia do trabalho (entidade ocultada)[14]14 . Ora, se no discurso de indivíduos da classe média 

ESCOLA PÚBLICA E CLASSES SOCIAIS NO BRASIL ATUAL
Linhas Críticas, Brasília, v. 14, n. 27, p. 165-176, jul./dez. 2008.
RESUMO
Este texto visa a tratar o fracasso escolar, no Brasil atual, como um fenômeno social, o que implica buscar as suas causas sociais. A nossa conclusão é que, ampliando-se consideravelmente a oferta de educação pública no nível fundamental e, ao mesmo tempo, mantendo-se o padrão de classe média do ensino, só pode predominar a tendência à manutenção e mesmo ao aumento do fracasso escolar das crianças de origem popular, incapazes de se elevar até o padrão de ensino definido pelo aparelho de Estado capitalista.

E é difícil imaginar a reformulação desse padrão, já que a classe média, altamente influente no campo educacional, necessita do fracasso escolar das outras classes sociais para intensificar a sua própria valorização econômica e social.  Meu objetivo, neste texto, é empreender uma análise sociológica da relação entre a Escola Pública e as classes sociais, na sociedade capitalista brasileira da atualidade. Não tenho a intenção de apontar, aqui, soluções para os supostos "problemas" vividos pela Escola Pública no Brasil atual. A discussão sobre "o que fazer" na Escola Pública ou com a Escola Pública é altamente relevante de um ponto de vista político. Ela exige, porém, dos debatedores, que aprofundem a análise política da relação entre "o que fazer" com a Escola Pública e "o que fazer" com o modelo vigente de sociedade. Neste texto, vou me limitar a analisar o modo de presença de certas classes sociais na Escola Pública no Brasil atual. A premissa teórica subjacente a esse esboço é a de que, por mais que a engenharia social construa soluções regeneradoras para a Escola Pública, existem limites sociais, ideológicos e políticos que o funcionamento da Escola Pública não pode franquear em qualquer sociedade capitalista, inclusive o Brasil.

O paradoxo vivido pelo sistema nacional de educação: a coexistência insolúvel entre “sucesso” e “fracasso”

Ao analisarmos o desempenho atual do sistema nacional de educação e do sistema de educação pública, constatamos que diferentes atores políticos avaliam de modo extremamente contrastado esse desempenho. De um lado, os governos de todos os escalões (federal, estadual, municipal) festejam aquilo que lhes parece ser o resultado concreto das políticas governamentais de ampliação contínua da oferta de serviços educacionais: a quase universalização do acesso ao ensino fundamental. O dado quantitativo oficial – a inscrição de 96,5% das crianças de sete a 14 anos no ensino fundamental – é utilizado no discurso governamental para sugerir a virtual concretização do direito universal à educação no Brasil. De outro lado, educadores e intelectuais se empenham em demonstrar, com apoio em material empírico abundante, que a outra face do sucesso do sistema educacional no plano da democratização do acesso à educação fundamental é o fracasso do sistema educacional no plano do desempenho escolar dos alunos.
Mais especificamente: muitos educadores e intelectuais constatam que, nos últimos 20 anos, ocorreu uma considerável ampliação das vagas do ensino público, não só no nível fundamental como também no nível médio. Porém, esses pesquisadores apontam, ao mesmo tempo, que a democratização do acesso ao ensino fundamental não resultou numa alteração qualitativa da configuração da pirâmide educacional brasileira. Alunos ditos “pobres” – isto é, oriundos das classes trabalhadoras manuais – estão relegados a uma trajetória escolar curta, que inclui a conclusão do ensino fundamental ou, no máximo, do ensino técnico de nível médio. Já os alunos ditos "ricos" (classe média-média ou classe média-alta, classes proprietárias) conseguem cumprir uma trajetória escolar longa, que abrange o ensino médio e o ensino superior (e, nos dias que correm, não só a graduação como também, cada vez mais, a pós-graduação). Há dados oficiais abundantes sobre as elevadas taxas de retardo, evasão e fracasso, registradas no sistema escolar brasileiro. Esclareça-se, desde logo, que o sistema de ciclos implantado no nível do ensino fundamental não pode contrabalançar essa taxa, já que tal sistema: a) ainda tem caráter minoritário em escala nacional (é adotado apenas em cinco estados e abrange apenas 21% dos alunos do ensino fundamental); b) mantém a possibilidade de reprovação em dois pontos de inflexão do sistema de educação básica: a quarta e a oitava séries do ensino fundamental. Vejamos agora a distribuição relativa de entidades públicas e entidades privadas dentro do sistema nacional de educação. No nível do ensino superior, o setor privado não só prepondera amplamente sobre o setor público, como também procura sufocá-lo. Já nos níveis do ensino fundamental e do ensino médio, o sistema de educação pública é altamente preponderante, a ponto de, em 2003 (segundo dados de uma pesquisa da Unesco),i a Escola Pública oferecer, no Brasil, 87% das matrículas do ensino médio. Portanto, sendo o sistema de educação pública amplamente predominante no nível fundamental e no médio, pode-se concluir que o padrão de funcionamento da Escola Pública é responsável pela reprodução, no Brasil, de uma pirâmide educacional que reserva uma trajetória escolar curta à maioria social e uma trajetória escolar longa à minoria social. Passemos, agora, a uma nova questão: de que modo o funcionamento concreto da Escola Pública, já relativamente democratizada quanto ao acesso,ii produz um resultado final tão antidemocrático? Dados de pesquisas recentes sugerem que se reproduz regularmente, dentro da Escola Pública brasileira, uma diferença de desempenho entre alunos "ricos" e alunos "pobres" (isto é, entre classe média e proletariado).iii Por isso, os alunos da Escola Pública que passam pelo funil do vestibular numa universidade pública, ainda que enfrentando numa concorrência desigual os alunos das grandes escolas particulares, tendem a pertencer predominantemente à classe média. Sobre essa diferença, há dados bastante significativos. Segundo o PNAD de 2001, 85% dos alunos com renda mensal média inferior a meio salário mínimo ainda não chegaram, aos 14 anos, à oitava série. E o boletim "Quantidade sem qualidade", divulgado pelo Preal (Programa de Promoção da Reforma Educativa na América Latina e Caribe) no seminário "Ações de Responsabilidade Social em Educação: Melhores Práticas na América Latina", informa que a discrepância de nota entre alunos ricos e alunos pobres é de 18%, favoravelmente aos alunos ricos. A importância sociológica dos dados sobre a diferença entre as classes sociais poderia ser relativizada, caso os alunos oriundos das classes trabalhadoras manuais fossem uma minoria dentro da Escola Pública. Dados de pesquisas recentes, entretanto, comprovam exatamente o contrário. Conforme levantamento realizado pelo projeto Gestão para o Sucesso Escolar, em 2004 os alunos das classes de renda C, D e E representavam 80% dos inscritos na quarta série, e 74% dos inscritos na 8ª série, em escolas públicas de São Paulo e Santa Catarina.iv Ora, se os alunos de origem proletária são a maioria esmagadora nas Escolas Públicas, até serem excluídos no processo de passagem ao ensino médio, devemos concluir que o propalado "fracasso" da Escola Pública consiste, antes de tudo, no fracasso em levar a massa dos estudantes proletários a uma trajetória escolar longa. Diante desse fracasso de amplo significado social, o fracasso da Escola Pública em colocar os seus alunos, perante o vestibular, em igualdade de condições com os
alunos das grandes escolas particulares, é um fracasso secundário, que concerne
principalmente (embora não exclusivamente) a alguns setores declinantes da classe média. O proletariado estudantil só chega minoritariamente ao vestibular nas universidades públicas, pois já foi excluído do sistema escolar bem antes disso, por força da lógica de funcionamento desse sistema, bem como das suas próprias condições materiais de existência.
É importante que se mantenha sempre em mente a distinção entre essas duas formas de "fracasso" do ensino público, já que grande parte das críticas à "baixa qualidade do ensino público" resulta do diagnóstico do fracasso da Escola Pública em preparar o aluno sobrevivente (isto é, da classe média) para o vestibular público; e, não, do diagnóstico de fracasso da Escola Pública em incorporar o proletariado ao processo educacional.

As causas sociais profundas do fracasso da Escola Pública em incorporar o proletariado ao processo educacional

Agora, podemos passar à questão central deste texto. É possível que a Escola Pública, numa sociedade capitalista qualquer, promova de fato a incorporação do proletariado ao processo educacional, permitindo-lhe concretizar uma trajetória escolar completa? Essa questão só pode ser respondida depois de termos analisado, no plano estritamente teórico, o lugar invariante da Escola Pública na sociedade capitalista em geral.
As revoluções políticas burguesas dos séculos XVII, XVIII e XIX não levaram à
criação imediata de um sistema de educação pública que estivesse fundado nos princípios do ensino público, gratuito e obrigatório; e que propiciasse educação igual e de boa qualidade para todos. Os sistemas nacionais de educação, emergentes na fase de formação da sociedade burguesa moderna, tinham um caráter claramente dual. Em países como a França, a Inglaterra e a Alemanha, a "escola dos ricos" coexistia com a "escola dos pobres", ainda na segunda metade do século XIX. Em fins do século XIX, o ideal da Escola Única – isto é, de uma Escola que fornecesse educação igual e de boa qualidade para todas as classes sociais – se difunde no aparelho estatal de alguns países onde o Estado concorre com a Igreja Católica pelo controle do processo educacional. A burocracia de Estado, defensora da "formação patriótica" (tendo em vista objetivos inclusive militares), postula uma educação igualitária, voltada para a formação de cidadãos, e critica a "formação cristã", pouco comprometida com tais ideais. Na França, o ciclo de instauração da Escola Única se iniciou com o governo republicano moderado de Jules Ferry, que em 1882-1883 instaurou o ensino primário público, gratuito e obrigatório. Tal ciclo continuou durante os governos radicais subseqüentes, que aperfeiçoaram a Lei Jules Ferry com uma série de medidas complementares; e chegou a um importante estágio em 1933, quando um novo governo radical decretou a gratuidade do ensino secundário.
Noutros países – católicos (como a Espanha ou a Áustria) ou com presença significativa da Igreja Católica (como a Alemanha) –, movimentos similares ao radicalismo francês também lutaram, nas primeiras décadas do século XX, por medidas educacionais destinadas à construção de uma Escola Pública segundo o modelo da Escola Única. Na verdade, porém, a Escola Única nunca existiu. A Escola Pública nunca funcionou de fato como uma Escola Única em nenhuma sociedade capitalista. A Escola Única foi, antes, um Mito difundido pelo Estado burguês para estabilizar politicamente a sociedade capitalista.v Pierre Bourdieu nos mostrou, nos seus trabalhos, que a Escola Pública, ao mesmo tempo em que se apresentava à sociedade como Escola Única, direcionava alunos de diferentes classes sociais para trajetórias escolares de tipo diverso. As classes superiores eram encaminhadas para a trajetória escolar longa (que incluía o ensino superior); e as classes inferiores eram relegadas à trajetória escolar curta (que abarcava, no máximo, o ensino técnico de nível médio). É importante, nesta altura, esclarecer que a submissão da Escola Pública a esse padrão de funcionamento não se deveu a fatores ocasionais, como a má vontade dos governos ou a inépcia do pessoal escolar, e sim a razões de ordem funcional ou genética.
A coexistência, dentro da Escola, entre um discurso igualitário–nivelador e uma ação diferenciadora tem, em primeiro lugar, uma explicação funcional. O Estado capitalista, ao criar a Escola Pública, tem de zelar para que o seu funcionamento preencha as tarefas necessárias à reprodução da divisão capitalista do trabalho: a) encaminhar uma minoria de alunos para os postos dirigentes dentro dessa divisão (isto é, para o trabalho de concepção); b) encaminhar a maioria dos alunos para os postos subalternos dentro dessa divisão (isto é, para o trabalho de execução). Seria incongruente que o Estado capitalista, cujas políticas estão organicamente comprometidas com a reprodução da divisão capitalista do trabalho, implementasse uma política educacional no sentido contrário. Ou seja: cairia em contradição o Estado capitalista que encaminhasse todos os alunos para o desempenho de um trabalho de concepção, pois, nesse caso, a sobre-qualificação chegaria ao seu grau máximo; ou o Estado capitalista que preparasse todos os alunos, simultaneamente, para o desempenho de trabalhos de concepção e de trabalhos de execução, pois, nesse caso, o Estado capitalista estaria atuando, no plano educacional, como se fosse um Estado socialista. Porém, se o Estado capitalista tem necessariamente de implementar uma política educacional seletiva, que corresponda ao modelo capitalista da divisão social do trabalho, ele também tem necessariamente de construir uma aparência igualitária e niveladora para o seu aparelho educacional. É da essência do Estado capitalista se apresentar como representante dos interesses de todos os cidadãos, em todos os níveis de sua ação. Isso implica, no plano específico da ação educacional, que o Estado capitalista se exiba como a instituição que garante a igualdade de oportunidades a todos que queiram se elevar ao topo da vida econômica e social. A construção do Mito da Escola Única é, de resto, especialmente importante para o Estado capitalista, pelo fato de que a escola é uma das únicas instituições da sociedade capitalista que pode ser apresentada de modo convincente às classes populares como instrumento privilegiado da construção da "sociedade aberta", onde todos terão chances de chegar ao topo, desde que se mostrem capazes. É preciso, em segundo lugar, fornecer uma explicação genética para a formação de uma Escola Pública essencialmente diferenciadora e aparentemente igualitária – niveladora. Alguma classe social deve ter visto a construção de uma instituição educacional que articulasse eficientemente ação diferenciadora e ideologia igualitária – niveladora como um meio de melhorar a sua posição relativa dentro da estrutura social capitalista. Essa classe social foi a classe média; isto é, o grupo social composto pelos  trabalhadores não-manuais. O contingente de trabalhadores dos serviços entrou em expansão numérica na segunda metade do século XIX, graças aos múltiplos efeitos econômicos e ocupacionais do desenvolvimento do capitalismo. Tal grupo social não poderia, porém, apostar que a sua valorização econômica e social ocorreria de modo automático, pelo simples fato de o trabalho no aparelho de serviços estar aparentemente mais próximo do trabalho intelectual que do trabalho braçal. Foi por isso que ele se envolveu concretamente na construção de uma instituição educacional que deveria preencher simultaneamente duas funções. A primeira função seria a de recompensar, em todos os níveis da atividade pedagógica, a superioridade cultural dos alunos de classe média diante dos alunos proletários. A segunda função seria a de apresentar o desempenho escolar superior dos alunos de classe média, não como decorrência de sua superioridade cultural (relacionada, em última instância, com a sua superioridade econômica), e sim como a pura expressão do seu mérito pessoal. Não foi, portanto, a burguesia, supostamente movida por um hipotético interesse em qualificar minimamente o trabalhador manual, que moldou a Escola Pública. A montagem da Escola Pública como uma instituição educacional articuladora de uma ação diferenciadora e de uma ideologia igualitária-niveladora foi dirigida pelos agentes ideológicos e políticos da classe média, como a burocracia estatal e os partidos de orientação reformista.vi A conseqüência prática da predominância dessa orientação de classe na montagem da Escola Pública foi a adoção de um padrão de ensino em estrita correspondência com os horizontes ideológicos da classe média e com o capital cultural, de natureza pré-escolar e extra-escolar, detido por essa classe social. Examinemos os elementos centrais desse padrão. A linguagem escrita, mais familiar à classe média, era valorizada em detrimento da linguagem oral (com a qual o proletariado se achava mais familiarizado). A teoria era radicalmente separada da prática social, especialmente da prática da produção; ou seja, a prática intelectual da abstração era radicalmente distanciada das experiências concretas de vida do proletariado. A familiaridade cultural pré-escolar e extra-escolar era altamente valorizada, o que favorecia objetivamente os alunos de classe média. Apelava-se, de modo consciente ou inconsciente, a um discurso alusivo, acumpliciado com os detentores de certo capital cultural. Ora, na vigência desse padrão de ensino dentro da Escola Pública, era quase inevitável o fracasso escolar da massa dos alunos não portadores do perfil de classe adequado a tal padrão. Por isso, o fracasso escolar de massa cresceu simultaneamente ao ensino público, gratuito e obrigatório; e se manteve em expansão, não obstante a reiteração oficial do discurso sobre a Escola Única. Mas o fracasso escolar de massa não podia ser oficialmente reconhecido, pelo Estado burguês (agente instaurador da "Escola Única"), como o fracasso do proletariado no seio de uma Escola pequeno-burguesa. Por isso, vários Estados burgueses – com o Estado francês à frente – tenderam a promover, quase simultaneamente à decretação do ensino público, gratuito e obrigatório, a realização de estudos psicológicos que tratassem o fracasso escolar dos alunos proletários como manifestações de algum distúrbio mental. Desse modo, a preocupação governamental com os maus resultados da Escola Pública recém-instaurada levou à produção de conceitos psicológicos imprecisos, como o de "débil mental".vii Tais conceitos evidenciavam a subordinação da psicologia nascente aos imperativos ideológicos do Estado burguês.
Ao longo da evolução da sociedade capitalista, a classe média atribuiu invariavelmente à Escola Pública uma função ideológica: a de encenar uma competição entre capacidades individuais que permitisse ao conjunto da sociedade atribuir aos alunos bem sucedidos (ou seja: os alunos de classe média, portadores de um montante razoável de capital cultural) o título de detentores de um elevado mérito pessoal. Mas isso não significa que os membros individuais da classe média tenham sempre atribuído à Escola Pública uma utilidade pessoal: em muitos momentos, a classe média pareceu perder o interesse pela Escola Pública, já aberta aos filhos de trabalhadores manuais, como lugar ideal para a educação escolar dos seus próprios filhos. Se nos servimos das formulações teóricas acima apresentadas, resolvemos facilmente o paradoxo aparentemente inscrito na atitude ambivalente de certos segmentos intelectualizados da classe média (aquilo que Bourdieu chama "a fração dominada da classe dominante") perante a educação. Vejamos em que consiste esse aparente paradoxo. Se, de um lado, tais segmentos defendem intransigentemente a Escola Pública como espaço institucional que parece concretizar a igualdade de oportunidades, de outro lado eles revelam – e fazem-no ao mesmo tempo – uma preferência pessoal pela Escola particular, em nome da necessidade de os seus filhos terem acesso a um "ensino de boa qualidade". Na verdade, não há nenhuma contradição nessa atitude dupla. De um lado, professores, intelectuais e profissionais liberais percebem, de modo mais ou menos consciente, que a valorização econômica e social da classe social à qual pertencem (a classe média) exige a manutenção, dentro da sociedade capitalista, de espaços formalmente democráticos, aptos a encenar uma competição livre de talentos individuais; e têm certeza antecipada de que os seus filhos sairão vencedores dessa competição. De outro lado, esses segmentos buscam conscientemente a melhor trajetória individual possível para os seus filhos dentro da classe média; por isso, optam por "escolas de alto nível", não contaminadas pela presença do proletariado, visto como um fator permanente de rebaixamento da qualidade do ensino. Há, portanto, uma diferença entre a perspectiva da classe social como um todo (isto é, aquilo que poderíamos denominar a  ideologia da classe social) e as ações individuais dos membros dessa classe, implementadas à luz dessa perspectiva. É essa diferença que explica a preferência pessoal de defensores ardorosos da Escola Pública pelas escolas particulares.viii Para a classe média, portanto, seria um absurdo, do ponto de vista social, a supressão da Escola Pública, seguida da privatização integral do aparelho educacional. Caso toda a educação escolar fosse paga, e não gratuita, ficaria evidente para o conjunto da sociedade que a inserção de certos indivíduos no topo da divisão capitalista do trabalho é o resultado concreto final da posse de recursos econômicos, metamorfoseados sucessivamente em capital cultural e em capital escolar. A rigor, a classe média se inclina predominantemente para uma fórmula conciliatória no terreno da educação; ela consiste em aceitar a coexistência, em proporções que podem variar conforme a conjuntura social e política, entre ensino público e ensino privado. Do ponto de vista ideológico, a classe média precisa sempre da presença da Escola Pública como espaço formalmente democrático, pois essa instituição, ao encenar a competição de talentos individuais, valoriza econômica e socialmente os bem sucedidos; e estes, nunca é demais lembrar, são majoritariamente indivíduos pertencentes à classe média. Do ponto de vista das preferências pessoais no terreno da educação escolar, os membros individuais da classe média tendem a oscilar entre a Escola Pública e a Escola Privada, conforme a conjuntura. Nas fases de baixa afluência do proletariado à escola ou
nos momentos de declínio dos rendimentos reais da classe média, os seus integrantes podem escolher para os seus filhos a Escola Pública como uma opção razoável; já nas fases ou momentos de democratização relativa do acesso à educação pública, os membros da classe média podem direcionar crescentemente os seus filhos para escolas particulares, encaradas como um refúgio contra a "queda de nível", provocada na Escola Pública pela presença crescente do proletariado.

A classe média e a Escola Pública no Brasil

Voltemos agora à análise da Escola Pública no Brasil. Imediatamente após a Revolução de Trinta, os agentes ideológicos e políticos da classe média (tenentes e nacionalistas no plano político, escolanovistas no plano especificamente educacional) se lançaram, antes e depois do processo constituinte, numa ação pela construção de um sistema de educação pública fundado no princípio do ensino (primário) público, gratuito e obrigatório. Tais agentes, ao mesmo tempo, reconheciam como legítima a existência do ensino privado; e sustentavam que a Escola Pública e a Escola Privada poderiam ser encaradas como instituições complementares (isto é, em coexistência pacífica), e não concorrentes (isto é, não-envolvidas, cada uma delas, numa luta sem trégua pela supressão da outra). Na verdade, a oposição das classes dominantes à expansão e ao fortalecimento da Escola Pública se conjugou à dupla atitude da classe média perante o ensino público; essas duas posições diferentes, exteriorizando-se na mesma conjuntura, determinaram a linha geral de desenvolvimento do sistema educacional brasileiro no período pós-trinta. É, portanto, importante sublinhar que a classe média, em razão de sua atitude dupla diante da educação escolar, acabou se configurando como um agente importante tanto do ensino público, quanto do ensino privado. Medidas importantes de democratização do ensino público, como o fim do exame de admissão ao ginásio e a decretação de oito anos de escolarização obrigatória (reformas promovidas pelo regime militar), ou a enorme  expansão das vagas no ensino fundamental (orientação implementada na Nova República), exprimiam não o ponto de vista educacional das classes dominantes, e sim a pressão social difusa dos "formadores de opinião", representativos da classe média, ou então a pressão social politicamente organizada, canalizada pelos agentes ideológicos e políticos da classe média, como o movimento docente, as reuniões de cientistas, as corporações profissionais, etc. Também é essencial mencionar que a existência de uma importante clientela de classe média, disposta a pagar por educação escolar, foi um fator decisivo para a expansão do ensino privado, a taxas variáveis, da década de 1940 até a década atual. Essa pressão da demanda de classe média por mais ensino privado se explica pelo fato de que a expansão da Escola Pública, ao promover a incorporação crescente das classes trabalhadoras manuais, não só revitalizou o Mito da Escola Única, indispensável do ponto de vista ideológico à valorização econômica e social da classe média, mas também determinou um "rebaixamento do nível de ensino", inaceitável em termos pessoais para os membros individuais da classe média.

O futuro da Escola Pública

Chegamos, aqui, ao impasse vivido pela Escola Pública no Brasil atual. Para esse impasse não há solução possível dentro do modelo capitalista de sociedade. A democratização do acesso à educação pública, que se compatibiliza plenamente com os horizontes ideológicos da classe média, determina a manutenção, se não o crescimento da taxa de fracasso escolar, já que a massa dos proletários ingressantes na Escola Pública não tem como se adaptar ao padrão de ensino (típico da classe média) que lhe é imposto. A alta taxa de fracasso escolar tende a provocar um rebaixamento das expectativas dos
professores com relação aos alunos; e, conseqüentemente, um rebaixamento da qualidade do ensino dentro do padrão vigente. Esse rebaixamento, por sua vez, afugenta a clientela de classe média, cuja motivação individual é o sucesso especificamente dos seus filhos na vida econômica e profissional. Isso significa, em última instância, que a expansão e a democratização do ensino público tendem a realimentar continuamente o ensino privado. Esse moto perpétuo pode ser rompido em certas conjunturas. É o que ocorre, por exemplo, quando o poder aquisitivo da classe média cai a ponto de dificultar a sua permanência na escola privada. O circuito, porém, tende a se restabelecer e a durar, enquanto estiver de pé o modelo capitalista de sociedade. Não há, portanto, nenhuma solução técnica para o problema básico da Escola Pública na sociedade capitalista, pois esse problema, como procuramos demonstrar neste texto, é um problema social, e não um problema técnico. Mantido o padrão de classe média do ensino, as medidas destinadas a promover a melhoria da qualidade de ensino só farão ampliar as exigências e dificuldades escolares para os alunos proletários; e levarão a um incremento do fracasso escolar. A melhoria interna da Escola Pública existente produzirá como resultado máximo tão-somente o aumento das chances de uma minoria de alunos, pertencentes à classe média, no exame vestibular. A transformação interna que faria da Escola Pública uma verdadeira escola a serviço da maioria social exigiria a ruptura do compromisso orgânico do aparelho educacional de Estado com a reprodução da divisão capitalista do trabalho. Uma Escola a serviço do proletariado resgataria a experiência concreta de vida e de trabalho do proletariado, integrando-a ao processo de produção e de transmissão de conhecimentos. Tal Escola prepararia todos os alunos, simultaneamente, para o exercício do trabalho de concepção e do trabalho de execução. Pode-se facilmente imaginar que não seria o Estado burguês o tipo de Estado capaz de levar a Escola Pública a romper com a divisão capitalista do trabalho: essa revolução na Escola só poderia ser promovida por uma democracia socialista de massa.
Notas
1 Dados da pesquisa da Unesco, realizada em 13 capitais brasileiras e coordenada por Miriam Abramovay e Mary Garcia Castro, foram reproduzidos no jornal Folha de São Paulo, caderno "Cotidiano", p. C 4, de 30 de abril de 2003.
2 Não nos interessa, aqui, mapear as objeções levantadas com relação aos dados sobre a evolução do acesso ao ensino fundamental no Brasil. A comprovação da falsidade dos dados oficiais não alteraria, no fundamental, a direção de nossa análise crítica sobre a Escola Pública no Brasil atual.
3 É difícil, nas análises concretas, estabelecer um corte rigoroso entre as classes sociais.  Aqui, ao nos referirmos à classe média, estaremos visando os seus dois segmentos mais emblemáticos (isto é, aqueles que corporificam mais claramente a eqüidistância desse grupo social com relação à classe capitalista e aos trabalhadores manuais): a classe médiamédia e a classe média-alta.
4 Os resultados principais dessa pesquisa foram reproduzidos no jornal Folha de São Paulo, caderno "Cotidiano", página C 1, de 1º de agosto de 2004.
5 O Mito da Escola Única é analisado por Christian Baudelot e Roger Establet em L´école capitaliste en France, Paris, François Maspero, 1971, capítulo 1, "Les illusions de l'unité de l'école".
6 O partido radical francês, que teve atuação destacada da década de 1900 à década de 1930, era altamente representativo da classe média pela sua composição social e pela sua ideologia. Tal partido assumiu um papel de vanguarda na luta pela laicização do ensino e pela instauração da Escola Única na França.
7 Sobre esse ponto, consultar Michel Tort, O quociente intelectual, Lisboa, Editorial Notícias, 1976; e Monique Vial, "Um desafio à democratização do ensino: o fracasso escolar", in: Zaia Brandão (Org.). Democratização do ensino: meta ou mito?, 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
8 Aborda-se, de modo mais detalhado, a ambivalência da classe média diante da Escola Pública no artigo "Classe média e escola capitalista", publicado em Crítica Marxista, Rio de Janeiro: Ed. Revan, n. 21, novembro de 2005.
Referências
BAUDELOT, Christian; ESTABLET, Roger. L' école capitaliste en France. Paris:
Maspero, 1971.
SAES, Décio Azevedo Marques de. Classe média e escola capitalista. Crítica Marxista, Rio de Janeiro: Ed. Revan, n. 21, p. 97-112, nov. 2005.
TORT, Michel. O quociente intelectual. Lisboa: Editorial Notícias, 1976.
VIAL, Monique. Um desafio à democratização do ensino: o fracasso escolar. In:
BRANDÃO, Zaia (Org.). Democratização do ensino: meta ou mito? 3. ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1987, p.11-23.



[1] * Professor da Faculdade de Educação e Letras da Universidade Metodista de São Paulo
[2] Cf. Luiz Antonio Cunha, Educação e desenvolvimento social no Brasil, Ed. Francisco Alves,RJ, 1978, p. 146.

[3] Era essa, de resto, a orientação educacional do movimento operário anarquista na Primeira República. Sobre esse ponto, consultar Paulo Ghiraldelli Jr, Educação e movimento operário,Ed. Cortez / Autores Associados, SP, 1987, capítulo III, “As questões pedagógicas e educacionais no seio do movimento operário”
[4] Sobre os movimentos educacionais e as políticas educacionais dos governos “ republicanos moderados” e dos governos “ radicais” na Terceira República Francesa, consultar Jean -Marie Mayeur, Les débuts de la IIIe Republique / 1871 – 1898, Editions du Seuil, Paris, 1973, capítulo 3, “ Le temps de Jules Ferry, 1879 – 1885”, e capítulo 4, “ Croyances et cultures” ; Zeev Sternhell, La droite révolutionnaire / 1885 – 1914, Coll. Folio / Histoire, Ed. Gallimard, Paris, 1997, capítulo II, “ Anatomie d’um mouvement de masse : la Ligue des Patriotes” ; e Lorenzo Luzuriaga, A escola única, Ed. Melhoramentos, São Paulo, s/d.., Capítulo IV, “ Aspirações e realizações”.
[5] Consultar Lorenzo Luzuriaga, op. cit., Capítulo IV, “ Aspirações e realizações”.
[6] Cf. a matéria publicada na Folha de São Paulo de 30 de março de 2002, p. C 3, e intitulada: “Professor prefere filho na rede privada”.

[7] Cf. a matéria “Opção de mestre / saiba como dez especialistas em educação escolheram as escolas de seus filhos”, de autoria de Débora Yuri e publicada na Revista da Folha, de 17 de agosto de 2003, pp. 25 – 27.

[8] Lembre-se que não existem apenas escolas particulares destinadas às “ crianças ricas”.Encontramos hoje, na periferia de São Paulo e no ABC paulista, escolas particulares propondo serviços educacionais, a baixos preços, às classes trabalhadoras manuais.

[9] Cf. Christian Baudelot et Roger Establet, L’École capitaliste en France, Ed. Maspero, Paris, 1971, especialmente a Parte I, “École unique = école divisée”.

[10]  Cf. Pierre Bourdieu et Jean-Claude Passeron, La reproduction, Les éditions de minuit, Paris, 1970, p. 242.

[11]Da obra já citada, ver especialmente o capítulo 4, “La dépendance par l’indépendance”.

[12]  Como explicar o “gênio” de Mozart, se não se levar em conta que seu pai, músico como
ele, ministrou-lhe aulas de teoria musical desde a primeira infância?

[13]  Cf. Pierre Bourdieu & Jean-Claude Passeron, op.cit., p. 186. A tradução da frase acima é do autor deste texto.

[14] A distinção teórica entre status pessoal e status posicional é apresentada por T. H. Marshall em Cidadania, classe social e status, Ed. Zahar, RJ, 1967, capítulo VI, “A natureza e os determinantes do status social”.