segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Terrorismos....


Por Augusto Buonicore,
Em janeiro de 1970 a Unidade Popular ainda não tinha decidido quem seria o seu candidato à presidência da República. Existia certa resistência ao nome do socialista Salvador Allende que havia sido derrotado por três vezes consecutivas. Enquanto se desenvolviam as negociações, o Partido Comunista lançou o seu próprio candidato: o poeta Pablo Neruda. No entanto, a situação exigia a unidade das forças de esquerda e, finalmente, chegou-se a um acordo em torno do nome do candidato socialista.
A Unidade Popular (UP) foi composta pelos partidos socialista, comunista, radical, social-democrata, Movimento de Ação Popular Unitário (Mapu) e Ação Popular. As duas principais forças eram a socialista e a comunista. O Partido Socialista podia ser considerado a extrema-esquerda da Internacional Socialista. Muitos de seus dirigentes se diziam marxista-leninistas e defendiam Cuba socialista. O Partido Comunista do Chile, por sua vez, era o maior partido da esquerda e, nas últimas eleições, tinha conseguido aproximadamente 17% dos votos e eleito 21 deputados e 5 senadores.
A campanha da UP ganhou o país e mobilizou centenas de milhares de trabalhadores. Todos pressentiam que chegara a hora da esquerda chilena. Mais de 400 mil pessoas se reuniram no último comício realizado na capital. Em 4 de setembro de 1970 Allende venceu por uma margem bastante apertada. Ele obteve 36,6% dos votos, Jorge Alessandri do Partido Nacional (direita) 34,8% e Radomiro Tomic da Democracia Cristã 27%. Uma multidão tomou as ruas de Santiago.
Contudo, a guerra ainda não havia sido ganha. Como nenhum dos candidatos obteve maioria absoluta dos votos cabia ao Congresso Nacional, no qual a UP era minoria, confirmar o candidato vencedor. Começou, assim, uma intensa pressão da burguesia sobre os parlamentares democrata-cristãos para que não aceitassem o resultado das urnas.
A CIA trama contra a posse de Allende

Num discurso pronunciado em 14 de setembro de 1970, o secretário de Estado estadunidense Henry Kissinger afirmou: "É muito fácil prever que a vitória de Allende possibilitará o estabelecimento de um governo comunista. Nesse caso, não se trata de um governo desse tipo numa ilha sem tradição e nem impacto na América Latina (...). A evolução da política chilena é muito séria para os interesses da segurança nacional dos Estados Unidos".
Em 21 de setembro a CIA enviou um telegrama aos seus agentes em Santiago: "O propósito da operação é evitar que Allende assuma o poder. O suborno do Parlamento foi descartado. O objetivo é a solução militar". Um relatório da embaixada norte-americana enviado à Kissinger afirmava: "o general Schneider tem que ser neutralizado, tirado da frente se por preciso". O comandante-em-chefe do Exército, general René Schneider, era um legalista e se opunha aos projetos golpistas da direita militar. Por isto, segundo a CIA, ele precisava ser eliminado.
No começo de outubro outra mensagem chegou à capital chilena: "Criar um clima de golpe mediante propaganda, desinformação e atividades terroristas destinadas a provocar a esquerda para ter um pretexto para um golpe". Alguns dias depois um agente da CIA em Santiago informou sua sede em Washington que o "general Viaux propôs seqüestrar os generais Schneider e Prats dentro das próximas 48 horas". A resposta foi: "Informar a esses oficiais golpistas que o governo dos EUA lhes dará apoio total no golpe." Os americanos não só sabiam do plano terrorista de matar o comandante do Exército chileno como o apoiavam. O próprio adido militar dos Estados Unidos entregou três metralhadoras aos oficiais golpistas, liderados por Viaux e Valenzuela, que assassinariam o general Schneider no dia 25 de outubro.
O fato ocorreu poucas horas antes da votação no Congresso que deveria homologar o nome de Allende. A CIA exultou: "24 horas da reunião do Parlamento, um clima de golpe existe no Chile (...) o atentado contra o general Schneider produziu conseqüências muito próximas das previstas no plano de Valenzuela (...). Em conseqüência, a posição dos conspiradores foi reforçada". Ledo engano.
O país ficou consternado e o resultado acabou sendo desfavorável às forças de direita. A ala democrática da Democracia Cristã venceu e, em 24 de outubro, o congresso acabou reconhecendo a vitória de Allende. Em troca exigiu a aprovação do Estatuto de Garantias Constitucionais pelo qual o novo governo socialista ficava proibido de mexer nos meios de comunicação privados, na educação e nas Forças Armadas. Um acordo que o novo governo cumpriu religiosamente nos seus mil dias conturbados.
O primeiro ministério refletiu a nova correlação de forças existente no Chile. Dele participavam cinco ministros socialistas, três comunistas, três radicais, um do MAPU, um da AP e um da esquerda independente. A esquerda havia conquistado o governo e não o poder. Os poderes legislativo e judiciário continuavam firmes nas mãos de representantes da burguesia. A subestimação deste dado da realidade criou perigosas ilusões no seio das forças socialistas chilenas.
As medidas econômicas e sociais do governo Allende
Uma das principais bandeiras da UP foi a nacionalização das minas de cobre. O cobre representava cerca de 80% das exportações chilenas e estava nas mãos de três grandes monopólios estrangeiros: a Anaconda, a Kennecott Cooper e a Serro.
A lei de nacionalização foi aprovada em 11 de julho de 1971 com o voto unânime do congresso nacional - nem a direita entreguista teve coragem de votar contra um anseio tão profundo da nação chilena. O governo também nacionalizou as indústrias do ferro e do salitre. Interveio na Companhia de Telefones do Chile, que era filial da poderosa ITT norte-americana e estatizou o sistema bancário, nele se incluía o City Bank. As nacionalizações feriram profundamente os interesses privados das companhias estadunidenses.
Após a estatização dos bancos o governo orientou o crédito para os pequenos e médios produtores e para projetos de desenvolvimento industrial e social. Houve uma significativa redução dos juros. Reativou-se o setor de construção civil, adotando uma ousada política de construção de casas populares.
Foram estabelecidas relações diplomáticas e comerciais com Cuba, China, Vietnã e Coréia do Norte. Realizou-se uma reforma agrária abrangente que resultou na quase extinção do latifúndio improdutivo. Neste período expropriaram-se cinco milhões de hectares em benefício de mais de 40 mil famílias.
As medidas econômicas e sociais adotadas levaram a que no primeiro ano de governo a produção industrial aumentasse em 12% e o PIB crescesse 8,3%, índice inédito até então. Reduziu o nível de desemprego e ocorreu um processo rápido de recuperação salarial. A participação dos assalariados na renda nacional subiu de 53% para 61%. A CUT foi legalizada e passou de 700 mil para 1 milhão de filiados.
Todas as crianças chilenas passaram a ter o direito a meio litro de leite por dia. O governo Allende ampliou drasticamente os serviços médicos e escolares. Estas medidas levaram a uma redução significativa da mortalidade infantil e dos níveis de analfabetismo. A previdência foi estendida para 330 mil pequenos comerciantes e feirantes e 130 mil pequenos industriais, artesãos, desportistas profissionais etc.
Em abril de 1971, a UP teve mais uma estrondosa vitória nas eleições municipais. Ela conseguiu 50,2% dos votos enquanto a DC atingiu 27% e o PN apenas 20%. A votação refletiu a rápida mudança de espírito das massas populares - um deslocamento para esquerda - e reforçou a tese sobre a possibilidade de um "via chilena para o socialismo". Esta se daria pela articulação do avanço institucional da esquerda, através das eleições, e a mobilização e organização das massas populares.
A ofensiva conservadora contra o governo popular
Desde a posse de Allende o imperialismo norte-americano, em conluio com setores da grande burguesia, implementou um plano metódico de destruição da economia chilena. De repente, os créditos externos desapareceram, houve uma corrida aos bancos e os capitais foram enviados ilegalmente para o exterior.
No mês de outubro de 1972 eclodiu a greve dos caminhoneiros que foi seguida por uma greve no comércio, nos transportes urbanos, nos hospitais particulares etc. Era uma greve insurrecional da burguesia. Neste período mais de trezentas mil cabeças de gado foram contrabandeadas e dez milhões de litros de leite atirados nos rios para que não chegassem nas mesas das crianças pobres. A terra não foi semeada e a produção de alimentos caiu catastroficamente.
Em pouco tempo começou a faltar alimentos nas grandes cidades. Proliferou o mercado negro e incentivou-se o processo inflacionário. O governo só não caiu graças a mobilização e a auto-organização popular. Diante da tentativa da burguesia em parar a nação, os trabalhadores ocuparam as fábricas fechadas e as mantiveram produzindo num ritmo superior a média anterior. Os camponeses ocuparam as fazendas paralisadas. Nas cidades, as comunas organizaram o abastecimento e montaram brigadas para ir ao campo ajudar na colheita e no transporte. Realizaram-se tentativas heróicas de furar o cerco imposto pela greve dos caminhoneiros. Diante da ameaça de golpe formaram-se os "cordões industriais", como instrumento de autodefesa proletária. O povo chileno tomou em suas mãos desarmadas a defesa da revolução.
O resultado desta ofensiva golpista foi a redução do nível de crescimento e o PIB caiu para 5% em 1972. Mesmo assim, esse índice não foi tão catastrófico como poderia ter sido sem a mobilização dos trabalhadores para vencer a sabotagem do imperialismo e dos monopólios. A situação econômica se tornou mais grave em 1973.
A Democracia Cristã: entre a cruz e a espada
A eleição de Allende só foi possível graças aos votos dos deputados da DC - liderados por Tomic. Durante mais de seis meses existiu um relativo entendimento entre congresso e o executivo. No entanto, vários acontecimentos minaram esta relação e colocaram a maioria da DC no colo do Partido Nacional.
Em 8 de junho de 1971 um agrupamento de extrema-esquerda assassinou o ex-ministro democrata-cristão Edmundo Zukovic. Existia uma forte suspeita que por trás das mãos dos terroristas estava a CIA. A ala direita da DC aproveitou-se da oportunidade para neutralizar a ala democrática do partido e exigiu o rompimento de todos os acordos com o governo.
Ainda em julho ocorreu, em Valparaíso, uma eleição complementar para a vaga de um deputado da DC que tinha falecido. Ali a UP havia conseguido 49% dos votos em março. Allende, então, propôs que ela apoiasse o candidato da DC e colocasse como condição que ele não fosse contra o governo. A UP recusou e lançou candidato próprio. O Partido Nacional retirou sua candidatura e apoiou, pela primeira vez, o candidato democrata-cristão - a condição agora é que ele fosse da oposição. A campanha foi dura e houve troca de acusações. O resultado da disputa foi a derrota da UP e o fortalecimento da ala direita da DC. No mesmo mês a ala esquerda daquele partido se desligou e formou o Movimento de Esquerda Cristã, que solicitou ingresso na UP.
A CIA compreendeu a importância desta eleição e destinou 150 mil dólares para o candidato oposicionista. Rompeu-se assim o equilíbrio partidário que permitiu a vitória de Allende em 1970 e foi se constituindo uma ampla frente de oposição que adquiriu um caráter golpista. O governo começou a ficar isolado no parlamento. Dias mais difíceis viriam.
No dia 10 de novembro de 1971 Fidel Castro chegou ao Chile para uma visita. Ele ficou no país por três semanas. Antes que partisse, milhares de mulheres da burguesia e das classes médias realizaram uma grande manifestação denominada "Marcha da Panela Vazia". A manifestação "pacífica" era acompanhada por grupos paramilitares de direita que tentavam provocar os carabineiros e criar distúrbios nas ruas.
O resultado das provocações direitistas foi um grave confronto que deixou vários feridos. Pela primeira vez na história chilena a polícia desbaratava, com firmeza, uma manifestação provocadora da burguesia. Indignado o presidente da Federação dos Estudantes da Universidade Católica afirmou: "acusamos o governo de transformar o corpo de carabineiro em um aliado impudico das forças marxistas". Formou-se uma cadeia nacional contra o governo Allende. Todo este movimento de "guerra psicológica" era patrocinado pelo governo norte-americano. Foi decretado o Estado de Emergência na capital para conter novas manifestações da direita.
Consolidou-se, assim, o rompimento da DC com a UP e sua aproximação definitiva com o Partido Nacional. O Congresso passou a exigir a demissão do ministro do interior, José Toha. A Câmara de Deputados votou a destituição do ministro. A decisão inconstitucional foi confirmada pelo Senado. Os três comandantes em chefe das Forças Armadas reconheceram o direito de Allende de nomear e demitir ministros. A Corte Suprema também confirmou a prerrogativa constitucional do presidente da República. No final de 1971, a legalidade ainda jogava do lado da UP.
Esta foi uma clara manobra da direita parlamentar no sentido de alterar o regime político, passando poderes do presidente progressista para um congresso conservador. Tentativa que, naquele momento, não obteve o resultado esperado. Estabeleceu-se, assim, uma clara ruptura entre os poderes da República. O parlamento se constituiu num obstáculo permanente para a ação do governo legítimo. O congresso não aprovava mais nenhum projeto do executivo e, ao mesmo tempo, não tinha quorum suficiente para destituí-lo. Abriu-se uma crise institucional de grande proporção.
As classes médias e o governo Allende.
Apesar disto, um setor importante das classes médias veio a engrossar o movimento oposicionista ao governo Allende. Por trás desta posição estavam certas predisposições ideológicas provenientes de sua posição social particular no modo de produção capitalista. Um das principais características da ideologia da classe média é o medo da proletarização.
No caso dos países capitalistas dependentes existia um agravante, como afirmou Altamirano: "as classes médias dos países de capitalismo dependente (...) gozam de um quadro de privilégios relativos. Seu padrão de vida é significativamente superior ao das grandes massas empobrecidas da cidade e do campo. Aqui existe um desnível de vida consideravelmente maior que nos países capitalistas avançados, entre as massas populares, de um lado, e grande parte dos intelectuais, dos empregados e da pequena burguesia ligada ao comércio, aos transportes, de outro. Essa particularidade dificulta uma aliança objetiva com o proletariado; como o processo revolucionário deve forçosamente impor uma distribuição de renda eqüitativa para as grandes massas, a deterioração relativa dos setores médios é quase inevitável".
Para entender a essência do discurso da direita para as classes médias, utilizando de seus preconceitos arraigados, o autor utilizou uma imagem bastante interessante: "Foi como se a burguesia lhes tivesse sussurrado ao ouvido: 'Cuidado! Nós somos os primeiros, mas depois virão vocês (...). Hoje expropriam as grandes empresas, mas terminarão por estatizar até os pequenos negócios (...). Foi sempre assim em todos os países socialistas (...). De modo que a gente precisa se defender juntos'". E assim foi feito. Quando do golpe militar a propaganda terrorista anticomunista já tinha realizado o seu trabalho e uma parte da classe média estava plenamente convencida que "comunista bom é comunista morto!" e quem ainda apoiava Allende só podia ser comunista.
Terrorismo e Golpe de Estado
O clima de guerra civil e as dificuldades econômicas, impostos pela grande burguesia e o imperialismo, não haviam conseguido diminuir o prestígio do governo diante das classes populares. Nas eleições parlamentares de março de 1973, a UP conquistou 44% dos votos e se consolidou como principal organização política do Chile. O aumento do número de parlamentares progressistas inviabilizou a idéia do golpe branco, parlamentar, visando destituir Allende. Agora só havia um caminho para a oposição rebelada: o golpe militar.
Apesar da relativa redução dos votos, em relação às eleições municipais de 1971, o que podia ser constatado era um aumento constante do número absoluto de eleitores da UP: um milhão em 1970, um milhão e quatrocentos mil em 1971 e um milhão e seiscentos mil em 1973. A maioria dos trabalhadores assalariados ainda estava com Allende.
Acompanhando o crescimento da UP ocorreu o crescimento da violência promovida pela extrema-direita. Em fevereiro de 1972 o alto comando militar já havia desbaratado um plano para assassinar Allende. Foram presos vários oficiais e civis ligados ao grupo fascista "Pátria e Liberdade". Por trás do complô estavam alguns generais. Neste mesmo período, dezenas de militantes de esquerda foram assassinados. Em 26 de julho de 1973 o próprio comandante Arturo Araya, adido naval do presidente, foi morto num atentado. Nos últimos meses do governo Allende a direita cometeu, em média, 21 atos terroristas por dia.
Sob a alegação de combater a violência crescente, o Congresso aprovou a Lei de Controle de Armas. O controle voltou-se, exclusivamente, contra o movimento popular. As Forças Armadas realizaram centenas de incursões nos bairros operários, nas fábricas, nas universidades em busca de armas. Os grupos para-militares de direita não foram molestados. Era uma medição de forças para o combate que se aproximava.
Os acontecimentos se sucederam num ritmo que atropelou a própria esquerda. Em maio de 1973, setores militares já haviam decidido dar o golpe de Estado. Para ajudar no clima de desestabilização, os empresários patrocinaram uma greve no transporte urbano. Em resposta, em 21 de junho, a Central Única dos Trabalhadores chilena realizou uma greve geral contra o golpismo e em apoio ao governo. Um milhão de trabalhadores desfilou pelas ruas de Santiago.
Poucos dias depois, no dia 29, ocorreu uma primeira tentativa golpista. Um regimento de blindados tentou atacar o Palácio presidencial. O próprio general Prats, numa ação corajosa, se dirigiu pessoalmente para as tropas insurretas e deu ordem de prisão aos seus comandantes. Ele pagaria caro pelo seu ato.
Prats era então o comandante-em-chefe do Exército e havia sido indicado para o Ministério do Interior após a greve patronal de outubro de 1972. Era um legalista fervoroso e um obstáculo aos intentos golpistas. Isto levantou contra ele o ódio dos setores direitistas da sociedade e das Forças Armadas. Em 21 de agosto centenas de mulheres realizaram um ato na frente de sua residência exigindo sua renúncia e dirigindo insultos contra sua honra. Eram as esposas e filhas da alta oficialidade. Os generais, como era o esperado, não se solidarizaram com seu comandante. Prats foi obrigado a renunciar e com ele saíram vários generais legalistas. Estavam abertas as portas para o golpe militar.
Aproveitando o clima existente, a Democracia Cristã fez aprovar na Câmara dos Deputados uma resolução declarando a "ilegitimidade" do governo. Novamente os trabalhadores tiveram que responder as manobras de direita e realizaram uma gigantesca manifestação na qual cerca de 800 mil pessoas saíram às ruas gritando: "Allende, Allende, o povo te defende!". Sem o saber, esta seria a última homenagem que o povo chileno prestaria ao seu valoroso presidente. Era 3 de setembro.
O Golpe de 11 de Setembro
Nas primeiras horas da madrugada do dia 11 de setembro a marinha se sublevou em Valparaíso, depois de participar de uma manobra conjunta com a marinha norte-americana. As primeiras notícias eram confusas. Pouco a pouco foi ficando claro que se tratava de um golpe militar dirigido pela cúpula das Forças Armadas. A frente de todas as operações golpistas estava o novo comandante-em-chefe do Exército, um dos homens de confiança de Prats e do próprio presidente. Ele se chamava Augusto Pinochet.
Ao receber as notícias das operações militares, Allende se dirigiu ao Palácio da Moneda. Com este pequeno grupo de homens e mulheres o presidente enfrentou por horas os ataques de tropas de infantaria, blindados e os temidos bombardeiros Hawker Hunter. Às 9 horas da manhã ainda pensou em distribuir armas para os trabalhadores. Convocou o comandante-em-chefe dos Carabineiros, general Sepulveda, e perguntou-lhe:
─ General, só resta distribuir armas ao povo. O senhor pode fazê-lo?
─ Distribuir armas, eu? Como quer que eu distribua armas?
Naquele momento as últimas tropas leais dos carabineiros se retiravam. O comando já não estava mais nas mãos do estupefato general.
Depois de mais de dois anos de governo não havia sido construída nenhuma estratégia para responder a um possível golpe militar, apesar das inúmeras ameaças e do crescimento da violência fascista. Confiou-se integralmente nos dispositivos militares legalistas de Allende. Quando este falhou, o governo e o povo ficaram sem uma alternativa viável. Os poucos agrupamentos armados de estudantes e de operários foram prontamente massacrados numa luta desigual. Milhares morreram esperando os regimentos leais ao governo. Uma página heróica e trágica da história dos trabalhadores latino-americanos.
Uma proposta de constituição de uma comissão militar integrada por oficiais leais e dirigentes ligados a Unidade Popular foi rejeitada. Apenas no final de agosto de 1973 começou a ser aventada a possibilidade de aplicação da lei de Defesa Civil que permitiria articular os carabineiros, ainda leais ao governo, e as organizações populares e sindicais. Esta era uma lei de 1945 e visava defender o país quando ele estivesse em perigo iminente. O plano não conseguiu sair do papel diante da oposição.
Na verdade, como afirmou Altamirano, "faltou à Unidade Popular a capacidade de prever a alterar as formas de luta quando isto se tornou necessário". Agarrou-se às instituições do Estado burguês quando a burguesia já as havia abandonado e caminhava abertamente no sentido da insurreição armada. Continuou: "Mas não era viável nem possível a manutenção de uma linha política institucional até iniciar a 'construção do socialismo', sem provocar rupturas. Por exclusiva vontade das classes dominantes, a confrontação devia produzir-se nalgum momento desse itinerário. E, por isto, o processo devia obrigatoriamente, contar com uma estrutura defensiva militar." Recuar, fazendo novas concessões à Democracia Cristã, ou avançar, rompendo a legalidade burguesa. Uma decisão nem sempre fácil de ser tomada.
Este, talvez, tenha sido o grande dilema e uma das limitações da experiência de "via chilena para o socialismo". Mas, os possíveis erros não devem encobrir o heroísmo da esquerda chilena e de seu valente presidente. As últimas palavras de Allende ainda repercutem na alma do seu povo: "Diante desses fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: não vou renunciar (...) pagarei com minha vida a lealdade do povo (...). Outros chilenos superarão esse momento amargo em que a traição pretende se impor; continuem sabendo que muito mais cedo que tarde novamente se abrirão as grandes avenidas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!". Em poucos minutos cairia morto o companheiro presidente e o povo nas barricadas e nas ruas responderia: "Allende, presente! Agora e sempre!".
Bibliografia:
- Altamirano, Carlos. Dialética de uma derrota. São Paulko: Brasiliense, 1979
- Alegria, Fernando. Allende, a paz pelo socialismo, São Paulo: Brasiliense, 1983
- Debray, Régis. Conversación com Allende. México: Siglo Veintiuno, 1973
- Garcés, Joan. Allende e as armas da política. São Paulo: Scritta, 1993
- Harnecker, Marta. Tornar possível o impossível. São Paulo: Paz e Terra, 2000
- Jara, Joan. Canção inacabada: a vida de Victor Jara. Rio de Janeiro: Record, 2002
- Marín, Gladys. "Salvador Allende en el centro da la conciencia de los pueblos" in La Insignia, Chile: janeiro de 2003
- Moraes, João Quartim de. Liberalismo e Ditadura no Cone Sul. IFCH-Unicamp, 2003.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

MP: INSCRIÇÕES ABERTAS PARA MONITORES

IX Colóquio Nacional e II Colóquio Internacional do Museu Pedagógico: Desafios Epistemológicos das Ciências na Atualidade

Período de realização: 05 a 07 de outubro de 2011
Coordenação: Museu Pedagógico/UESB.
Número de vagas: 30 vagas
Carga Horária máxima: 40h
Critérios: Alunos regularmente matriculados em curso de graduação ou pós-graduação.
Período de Inscrição: 01 a 16 de setembro de 2011
Local: Departamento de Filosofia e Ciências Humanas - DFCH/UESB ou Museu Pedagógico UESB – Casa Padre Palmeira.

A seleção dos inscritos ocorrerá no dia 21 de setembro de 2011, às 9h, no Museu Pedagógico - Casa Padre Palmeira.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Ecos de Chiapas na América Latina

Resenha do livro "América Latina: transnacionalização e lutas sociais no alvorecer do século XXI - da luta armada como política (o caso EZLN)", de autoria de José Rubens Mascarenhas de Almeida.Vitória da Conquista: Edições UESB, 2010, 220p.

                                                                                                    Por Deni Ireneu Alfaro Rubbo*
Ángel Rama em seu texto “Nossa América” argumentava que por mais que a América Latina tivesse sido dividida, fragmentada e isolada por decênios, era admirável observar que por de atrás de suas cercas havia homens que lutavam num mesmo sentido e que por mais que o quebra-cabeça das nacionalidades implicasse em particularidades, isso não impediu o desenvolvimento de processos similares entre essas nações.
            Plenamente a favor dessa tendência que podemos qualificar, sem maiores problemas, de cada vez mais rarefeitos, o livro de José Rubens Almeida (professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e pesquisador do Núcleo de Estudos de Ideologia e Lutas Sociais) faz uma discussão bem cuidadosa acerca dos entroncamentos sociais, econômicos e políticos que o continente latino-americano contemporâneo vivencia, inserido dentro do processo de reprodução do padrão de acumulação capitalista mundial. Analisa, por outro lado, o ressurgimento intempestivo das lutas sociais – notadamente aquelas protagonizadas pelas forças sociais camponesas – aprofundando sua pesquisa no tocante da especificidade da luta armada através do conhecido Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) que completou, em 2010, exatos 26 anos de existência e 16 anos de insurgência.
            Chiapas, na língua tapetchia, significa Serra da Batalha. Distante dos centros decisórios políticos e das pálidas conquistas da revolução mexicana, a última região do país, atravessada pelo universo cultural maia, não passou incólume ao processo de entrada de capital no campo, o que fez com que não só se ampliasse a concentração de terra, mas também à destruição de inúmeros bosques e fontes de água. Conforme a narração de Almeida, no transcurso das duas últimas décadas o que não faltou foi capitalismo no México, seguindo cada palavra e cada linha do programa estipulado pelo Consenso de Washington, onde o Estado Nacional, ao contrário dos constantes discursos de que ele seria um empecilho à economia global – o mito do fim do Estado Nação – afirmou-se categoricamente como “assegurador das condições necessárias à reprodução das estruturas capitalistas de produção” (p. 68). Evidentemente esse processo de intensa colaboração e subordinação ao capital internacional, entrou em colapso total em 1994, não propriamente pela fragilidade da estrutura institucional supostamente “atrasada” ou pela incapacidade de “adaptação” às novas regras do jogo, conforme a hipótese de Fukuyama, mas, ao revés, pelo seu incontornável excesso de capitalismo, isto é, foi justamente a eficácia dos valores e das instituições modernas que propiciaram a catástrofe econômica e naturalmente o agravamento societário do país. Aliás, por mais que não esteja suficientemente claro nas ponderações do autor que o problema gire exatamente pelo excesso de capitalismo como problema geral no continente latino-americano, há pistas no decorrer da obra que insinuam essa assertiva. Almeida cita o historiador chileno-brasileiro Hector Bruit, o qual assinala que o caráter singular do continente latino-americano quebrava o tempo cronológico e recortes espaciais de sua formação social, “vivendo o tempo da conquista sem deixar de viver a modernidade” (p. 185). Ou seja, uma das possíveis chaves explicativas de nossas dramáticas contradições sociais residiria justamente na identificação do progresso como catástrofe.
            A segunda parte do livro é dedicada à resistência das camadas plebeias latino-americanas, na qual se destaca as bases sociais camponesas por serem forças sociais capazes de anunciar projetos para sociedade e demandas bem definidas, ao contrário das interpretações feitas – notadamente pelos partidos comunistas – que colocavam o camponês em uma presença passiva no lócus da ação política. Isso fica claro quando o autor diferencia e, principalmente, critica os autores que assentaram suas hipóteses na indistinção entre o camponês tradicional e o camponês latino-americano chegando obviamente a conclusões precipitadas, como, por exemplo, no conhecido adeus ao camponês latino-americano anunciado pelo renomado historiador Eric Hobsbawm. As lutas camponesas e o camponês latino-americano devem ser entendidos como expressão do contemporâneo e da contemporaneidade e não como categoria do passado, deve ser entendido na singularidade de nosso caráter indo-americano, como anunciava José Carlos Mariátegui, de relações sociais emanadas no seio de uma comunidade cujo perfil étnico e histórico está razoavelmente definido na origem indígena e coletiva.
            Como se sabe, muitas das lutas explosivas em nosso continente durante o decorrer do século XX foram manifestadas e traduzidas através da luta armada, o que será enfatizado pelo autor. Contudo, nem por isso incorre na hipótese segundo a qual a resistência política dos representantes mais empobrecidos da América Latina se dá apenas no campo da luta armada, o que seria, em todo caso, uma generalização gravíssima, em razão da multiplicidade de formas concretas de sublevação e de resistência que marcam os diversos grupos sociais do campo nas duas últimas décadas. Todavia, diferentemente da forma de luta armada disseminada após o massacre estudantil de Tlatelolco, em 1968, – e aqui atenção reside a originalidade e a hipótese central do livro de Almeida – cujas características eram a tática de assaltos a bancos e de seqüestros, o caráter peculiar da situação concreta do EZLN – um processo de militarização fortíssima do Estado de Chiapas e um processo de paramilitarização da contra insurgência – o que acarreta sufocamento, desgaste e tensão permanente na vida cotidiana dos rebelados, sendo uma necessidade da utilização de armas para sua proteção e sobrevivência.
            No tocante à sua matriz discursiva ideológica – tema da terceira parte do livro – o EZLN foi capaz de reordenar os enunciados a partir de uma construção contra-hegemônica – no sentido gramsciano do termo - complexa e multifacetada, que abarca amplos segmentos sociais, embora fortemente caracterizada por uma “resistência difusa”, típica de seu elemento primordialmente indígena. Conforme argumenta o autor, a construção metafórico-literária do movimento baseada na cosmovisão maia que imprime um caráter humanista radicalmente crítico das relações sociais reificadas, em nada prejudicou a incorporação de elementos modernos, como o próprio pensamento marxista, por imprimir uma visão de mundo que reclama por um nacionalismo crítico, isto é, aquilo que precisamente Lênin dizia em relação a romper os limites e as contradições das nações burguesas e um espaço de luta social internacional, que aglutine um número de forças sociais e políticas capazes de lutarem e resistirem contra a penetração do capital em todas as esferas materiais e simbólicas da vida social.
            Embora tenha trabalhado a dimensão imaginária das lutas camponesas e da história do campesinato, o autor poderia - como estímulo de quem aprecia o debate – não tratá-lo tão perifericamente, afinal quando se trata dos (neo)zapatistas, isso lhe fornece um lugar privilegiado nesse campo (o exemplo do velho Antônio é bastante elucidativo nesse caso).
            Poucos são os pensadores brasileiros que são latino-americanos e certamente José Rubens já ocupa esse espaço. Ainda que seja um espaço pequeno, ele é largamente crítico e contundente para, quem sabe, estimular o debate entre a particularidade e a singularidade do caráter periférico latino-americano e das lutas sociais contemporâneas, provando, de uma vez por todas, a fragilidade dos enunciados neoliberais que se mostram claramente esgotados, uma vez que a história está, mais do que nunca, viva, aberta e imprevisível.



* Mestrando em Sociologia pela FFLCH-USP e bolsista CAPES.Oublicada em Lutas Sociais nº 25/26 (2º Sem. 2010 e 1º de 2011), Neils, São Paulo.