Por Rogério Castro*
Dia desses, o jornalista Mino Carta se queixava da baixa qualidade da formação intelectual das novas gerações de jornalistas brasileiros. “O jornalismo virou algo grotesco e de baixo nível”, teria dito ele, segundo o portal Comunique-se. A pergunta é: as faculdades de Jornalismo teriam decaído na preparação dos futuros profissionais, ou esta seria uma prova de que, nos dias atuais, dado à explosão da informática, a formação intelectual desse profissional passaria a ser considerada supérflua?
Três linhas de entendimento, pelo menos, podem ser verificadas nesse debate: uma é a patronal, que ganha chão para poder flexibilizar ainda mais as já precárias relações de trabalho; outra, animada pela esquerda, entende que a defesa do diploma hoje é um obstáculo para a “democratização da comunicação”; e uma terceira, vista como corporativa (e a defesa dos interesses dos assalariados que trabalham, ao contrário de corporativismo, é uma questão de primeira necessidade), defende o diploma para o exercício da profissão como forma de inibir a precarização, a informalização e defende uma informação de qualidade para a sociedade.
Mas as razões para a colocação de Mino precisam ser averiguadas: por que o jornalismo se tornou algo grotesco e de baixo nível? Por outro lado, poderíamos também indagar por que a sociedade brasileira tolera tanto – sem reclamar – esse “jornalismo de baixo nível e grotesco”? O intrincado de fatos que explica essa questão é um emaranhado de nós que só com certa calma pode ser desembaraçado.
Ato heroico
Pois bem. Nos tempos atuais, impera no meio universitário, principalmente nas faculdades de comunicação, uma ditadura epistemológica denominada “identidade cultural”. A característica maior que marcou o pensamento moderno – isto é, a ruptura com a tradição do período anterior – tem perdido terreno (consciente ou inconscientemente) para as concepções que visam a revestir todo conhecimento popular – inclusive as crendices de outrora, marca do pensamento tradicional anterior ao modernismo – de autêntico, objeto da mais acrítica admiração. Com isso, ideias de verdades objetivas são drasticamente alijadas em prol de relativismos, de verdades cada vez mais centradas no sujeito – e não o contrário, a realidade objetiva prevalecendo sobre este último. O multiculturalismo, a concepção de que o que importa acima de tudo são as culturas e as “identidades”, tem conseguido, além de gerar muita confusão, fazer decair – em queda livre – o padrão cultural que o advento da modernidade viu com Goethe, Cervantes, Thomas Mann, Kafka e outros. Tanto que o fim da chamada “grande cultura”, das “grandes narrativas”, são considerados traços do que vem sendo chamado nos dias atuais de “pós-modernismo”. A aceitação cada vez mais sem maiores resistência do espetáculo midiático, de um jornalismo que não procura buscar entender as causas da violência como uma expressão da desumanização da sociedade, e sim faz da barbárie social prato cheio para alavancar os índices de audiência com um sensacionalismo cada vez mais despudorado, é ou não sinal de que os jornalistas atuais se encontram reféns da mediocridade pós-moderna?
Por outra parte, a crise do desemprego na sociedade capitalista atual fez indubitavelmente muitos bons jornalistas pisarem no freio a respeito de suas convicções. A queda na circulação do número de jornais motivada em parte pela explosão das mídias digitais – artefatos de convergência de mídia –, pela concorrência com a difusão da rede mundial de computadores como ferramenta e meio de informação, numa palavra, a descentralização das fontes de informação, tem gerado precarização, subemprego e demissões. As expressões da precarização, por exemplo, vão da escancarada manipulação das leis trabalhistas pelos regimes de pessoa jurídica (PJ) às acumulações de cargos por jornalistas (como fotógrafo), rebaixamento salarial e de direitos, em prol da chamada empresa “enxuta”. Nessas condições, por si só, ser um jornalista investigativo, combativo, já seria um ato heroico; quando a ameaça de demissão se apresenta no horizonte, então, vira um suicídio.
O jornalismo brasileiro vai mal
O monopólio dos meios de comunicação também é outra questão. Na chamada “grande mídia” só tem vez aquele que se enquadra, ou renuncia a convicções – os que ainda as têm – em prol dos “princípios editoriais” do grupo – na verdade, conglomerados – em questão. São poucas as profissões, mesmo nesta sociedade, que abdicam do código de ética da profissão, da autonomia profissional, que renuncia a tudo para satisfazer a vontade do patrão (via normas editoriais). E, logo, como o patrão tem milionários contratos com os anunciantes – muitos deles possíveis pivôs de escândalos (é só buscar entender o que é um fato jornalístico para logo em seguida vir a colocação do “você sabe com quem você está mexendo?”) –, não vai querer desapontá-los com notícias “desagradáveis”, que ponham em xeque a “integridade” de suas marcas. É claro que muitos jornalistas entram no jogo – recebem muito bem para isso, inclusive – de forma consciente, ou mesmo inconsciente; mas o fato é que a manipulação dos fatos é uma pecha que se imputa aos jornalistas, muito mais para o “mal” (dos fatos) do que para o “bem”.
O que seria, então, “qualidade da informação”? E “liberdade de imprensa”? Numa designação geral, o entendimento de que todo indivíduo teria “direito à informação” nos parece plausível para a primeira pergunta. Contudo, o que é o direito na sociedade civil moderna? O direito é a forma jurídico-abstrata por meio da qual o cidadão moderno é tido como igual e livre na esfera política. Contudo, a desigualdade econômica, que no período anterior era caracterizada pela diferença de classes entre servos e senhores, na sociedade civil moderna, após o advento do “trabalho livre”, adquiriu outra forma, mas mantida a essência da diferença anterior consubstanciada na relação entre proprietários e não-proprietários. A liberdade político-abstrata na esfera pública e a desigualdade econômica concreta na nova sociedade civil criavam a chamada cisão do homem moderno: igual no plano abstrato, e desigual no plano real.
Essa mesma colocação ajuda a responder a outra questão: seria possível exercer com liberdade plena a atividade jornalística, por exemplo, nas condições elencadas nos parágrafos anteriores, onde os detentores dos meios de comunicação ditam as linhas editoriais e os seus empregados só têm como opção aceitar ou não aceitar (ou, no máximo, ir até certos limites)? Qualidade de informação numa sociedade que vive intensamente sob o duelo entre aplacar e não aplacar a crise (como a da Europa atual), tida como “natural” (no sentido de algo advindo da natureza mesmo), ou “insuperável” etc., parece ser uma pretensão maior do que dar-se por satisfeito em ouvir “os dois lados da questão” (apesar de, às vezes, ser este um importante passo), e muito mais do que achar ser possível encontrar um ponto de equilíbrio na “objetividade jornalística”. Se se procurar entender por qualidade de informação uma matéria aprofundada, que mergulha fundo, sem censura e com seriedade em busca das causas do fato a ser noticiado, sem os vícios do enquadramento do mercado e os improvisos do trabalho meramente “intuitivo” (empiricista), vai se ver que realmente Mino Carta tem razão, e que nem mesmo na TV pública brasileira, a não ser com algumas exceções fora dos noticiários, a situação é diferente. O jornalismo brasileiro vai mal, e a tendência, se não haver uma mudança no curso atual, não parece ser a das melhores.
Os donos saem ganhando
Mas por que, mesmo com a agitação em torno do debate do diploma, os jornalistas se encontram tão divididos, entre o silêncio, a indiferença e a defesa tímida de alguns e heroica dos sindicatos? As razões novamente são muitas. E a principal delas talvez seja a desvalorização da profissão. Com salários achatados, cada vez com menos prestígio (a não ser os “bam-bam-bans” de sempre), considerados pouco indispensáveis nos veículos pequenos e médios, sobrecarregados de trabalho nos grandes, numa palavra, com o horizonte de sucesso cada vez mais estreitado pelo mercado, boa parte da safra – e poderia arriscar e dizer que o melhor dela – ultimamente tem migrado de área, procurado o “oásis da estabilidade” do outrora tão criticado serviço público, mesmo que ocupe funções não condizentes com a sua formação superior. Aqui se vê a frustração de não se poder levar a cabo a realização profissional, do sonho interrompido no auge da melhor parte. Os que não estão subempregados, ou literalmente desempregados, buscam exercer a profissão – também de forma precária – de maneira autônoma, seja trabalhando de forma terceirizada para uma empresa de comunicação (o freelancer) ou como prestador de serviços de assessoria de imprensa (sem carteira assinada), ou seja fazendo trabalho avulso por meio de blogs e meios “livres” ou independentes (físicos ou digitais). O custo da independência editorial revela aqui o seu valor: o ônus da subsistência ou do trabalho por conta própria. Esse esfacelamento e a dificuldade duma visão de conjunto, portanto, explica o porquê do debate sobre o diploma ter se tornado presa fácil para os rótulos de “amesquinhamento” dos patrões da mídia, como se defender uma questão de primeira necessidade fosse luxo, e não, como o nome diz, uma questão de primeira necessidade.
Os únicos que sairão ganhando, por mais que haja uma compreensão na esquerda que insiste em ver na defesa do diploma um obstáculo para a democratização da comunicação, com a desregulamentação da profissão do jornalista – que vigora hoje, bom que se diga; a PEC 33 é uma tentativa de superação – são os donos dos meios de comunicação, que se sentirão cada vez mais “donos da situação” com a ausência dessa regulamentação nas negociações salariais (coletivas e individuais), nas renovações de contrato de trabalho, nas contratações, no assédio moral etc.
Instrumentos críticos
A esquerda que é contra se apoia numa concepção abstrata, que vigora obliquamente nos debates sobre democratização da comunicação, de que incentivando a atividade livre dos indivíduos, estes vão se auto-afirmar, criar “consciência” para participar de forma “autônoma” dos processos decisórios que lhes dizem respeito. O impacto que a sociedade teria que sofrer – mesmo com uma transição sem muitos abalos – e a sucessão de mudanças objetivas que culminaria em novas relações objetivas, com a emergência inclusive do “tempo livre” como fator objetivo, sai de cena para dar lugar às “transformações” laterais, vindas de qualquer lugar, como se a sociedade se estruturasse sem lógica, sem razão etc.
Para não ir muito longe, a emancipação do homem de acordo com essa visão parece ser uma questão subjetiva; os homens para se tornarem “livres” precisam só ter condições de pensar livremente e decidir o seu caminho; as relações concretas (ou os seus efeitos) em nada interferem (ou retroagem) sobre eles, de maneira que a “consciência” pode ser alcançada sem nenhuma correlação com o mundo objetivo, sem uma mudança nas relações concretas de produção, estando ela imune a estas últimas. Essa perda de eixo – ou de centralidade – tem levado muita gente de esquerda – ou originalmente de esquerda – a pensar que dessa forma se alcança a independência dos indivíduos, e que a defesa do diploma, nesse contexto, portanto, seria um obstáculo à “livre e autêntica” manifestação individual das pessoas – o fracasso das rádios comunitárias no contexto brasileiro e a transformação de muitas em veículos comerciais, com o posterior acolhimento nas suas programações dos produtos da indústria cultural, é a mais clara demonstração do fiasco estratégico dessa política. Aqui, inclusive, essa posição em larga medida se esposa com a concepção da identidade cultural falada linhas acima.
Para escrever um bom texto jornalístico (mesmo televisivo), portanto, é preciso não apenas ser um bom narrador, ou mesmo descrever bem um fato. Se não se tem conhecimento global de como funciona a sociedade moderna, articulado, sistemático, numa palavra, se não se tem conteúdo – não redundante dizer: intelectual; e não apenas técnico –, não se tem conhecimento agregado para produzir um relato sobre qualquer fato digno de noticiabilidade – seja ele cotidiano, contemporâneo, cultural, científico, etc. Essa é a única razão de se exigir diploma para o exercício da atividade jornalística (ou de qualquer outra atividade do chamado “trabalho intelectual”): a pressuposição de que a escola superior universitária é o lugar privilegiado onde o acesso ao debate cultural da modernidade deve ocorrer sem maiores transtornos, além da discussão especificamente ética no âmbito da sociedade capitalista. Se hoje a Universidade não cumpre tal função, entendendo a afirmação de Mino como um problema de formação profissional, certamente o maior responsável por tal situação é o pós-modernismo, que é a tendência dominante nas escolas de jornalismo brasileiras hoje. A saída, como está bem clarificada no texto, não é abolir o ensino superior em comunicação social, ou mesmo propor a desobrigação do diploma, como forma de atenuar o problema da qualidade da informação; a alternativa seria reafiar os instrumentos críticos de análise da realidade social, fazer o confronto filosófico e sepultar de vez toda fraseologia pós-moderna.
*Jornalista e mestre em Serviço Social.
Publicado no Observatório da Imprensa, em 06/12/2011 na edição 671.
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