Por Deni Ireneu Alfaro Rubbo*
Ángel Rama em seu texto “Nossa América” argumentava que por mais que a América Latina tivesse sido dividida, fragmentada e isolada por decênios, era admirável observar que por de atrás de suas cercas havia homens que lutavam num mesmo sentido e que por mais que o quebra-cabeça das nacionalidades implicasse em particularidades, isso não impediu o desenvolvimento de processos similares entre essas nações.
Plenamente a favor dessa tendência que podemos qualificar, sem maiores problemas, de cada vez mais rarefeitos, o livro de José Rubens Almeida (professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e pesquisador do Núcleo de Estudos de Ideologia e Lutas Sociais) faz uma discussão bem cuidadosa acerca dos entroncamentos sociais, econômicos e políticos que o continente latino-americano contemporâneo vivencia, inserido dentro do processo de reprodução do padrão de acumulação capitalista mundial. Analisa, por outro lado, o ressurgimento intempestivo das lutas sociais – notadamente aquelas protagonizadas pelas forças sociais camponesas – aprofundando sua pesquisa no tocante da especificidade da luta armada através do conhecido Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) que completou, em 2010, exatos 26 anos de existência e 16 anos de insurgência.
Chiapas, na língua tapetchia, significa Serra da Batalha. Distante dos centros decisórios políticos e das pálidas conquistas da revolução mexicana, a última região do país, atravessada pelo universo cultural maia, não passou incólume ao processo de entrada de capital no campo, o que fez com que não só se ampliasse a concentração de terra, mas também à destruição de inúmeros bosques e fontes de água. Conforme a narração de Almeida, no transcurso das duas últimas décadas o que não faltou foi capitalismo no México, seguindo cada palavra e cada linha do programa estipulado pelo Consenso de Washington, onde o Estado Nacional, ao contrário dos constantes discursos de que ele seria um empecilho à economia global – o mito do fim do Estado Nação – afirmou-se categoricamente como “assegurador das condições necessárias à reprodução das estruturas capitalistas de produção” (p. 68). Evidentemente esse processo de intensa colaboração e subordinação ao capital internacional, entrou em colapso total em 1994, não propriamente pela fragilidade da estrutura institucional supostamente “atrasada” ou pela incapacidade de “adaptação” às novas regras do jogo, conforme a hipótese de Fukuyama, mas, ao revés, pelo seu incontornável excesso de capitalismo, isto é, foi justamente a eficácia dos valores e das instituições modernas que propiciaram a catástrofe econômica e naturalmente o agravamento societário do país. Aliás, por mais que não esteja suficientemente claro nas ponderações do autor que o problema gire exatamente pelo excesso de capitalismo como problema geral no continente latino-americano, há pistas no decorrer da obra que insinuam essa assertiva. Almeida cita o historiador chileno-brasileiro Hector Bruit, o qual assinala que o caráter singular do continente latino-americano quebrava o tempo cronológico e recortes espaciais de sua formação social, “vivendo o tempo da conquista sem deixar de viver a modernidade” (p. 185). Ou seja, uma das possíveis chaves explicativas de nossas dramáticas contradições sociais residiria justamente na identificação do progresso como catástrofe.
A segunda parte do livro é dedicada à resistência das camadas plebeias latino-americanas, na qual se destaca as bases sociais camponesas por serem forças sociais capazes de anunciar projetos para sociedade e demandas bem definidas, ao contrário das interpretações feitas – notadamente pelos partidos comunistas – que colocavam o camponês em uma presença passiva no lócus da ação política. Isso fica claro quando o autor diferencia e, principalmente, critica os autores que assentaram suas hipóteses na indistinção entre o camponês tradicional e o camponês latino-americano chegando obviamente a conclusões precipitadas, como, por exemplo, no conhecido adeus ao camponês latino-americano anunciado pelo renomado historiador Eric Hobsbawm. As lutas camponesas e o camponês latino-americano devem ser entendidos como expressão do contemporâneo e da contemporaneidade e não como categoria do passado, deve ser entendido na singularidade de nosso caráter indo-americano, como anunciava José Carlos Mariátegui, de relações sociais emanadas no seio de uma comunidade cujo perfil étnico e histórico está razoavelmente definido na origem indígena e coletiva.
Como se sabe, muitas das lutas explosivas em nosso continente durante o decorrer do século XX foram manifestadas e traduzidas através da luta armada, o que será enfatizado pelo autor. Contudo, nem por isso incorre na hipótese segundo a qual a resistência política dos representantes mais empobrecidos da América Latina se dá apenas no campo da luta armada, o que seria, em todo caso, uma generalização gravíssima, em razão da multiplicidade de formas concretas de sublevação e de resistência que marcam os diversos grupos sociais do campo nas duas últimas décadas. Todavia, diferentemente da forma de luta armada disseminada após o massacre estudantil de Tlatelolco, em 1968, – e aqui atenção reside a originalidade e a hipótese central do livro de Almeida – cujas características eram a tática de assaltos a bancos e de seqüestros, o caráter peculiar da situação concreta do EZLN – um processo de militarização fortíssima do Estado de Chiapas e um processo de paramilitarização da contra insurgência – o que acarreta sufocamento, desgaste e tensão permanente na vida cotidiana dos rebelados, sendo uma necessidade da utilização de armas para sua proteção e sobrevivência.
No tocante à sua matriz discursiva ideológica – tema da terceira parte do livro – o EZLN foi capaz de reordenar os enunciados a partir de uma construção contra-hegemônica – no sentido gramsciano do termo - complexa e multifacetada, que abarca amplos segmentos sociais, embora fortemente caracterizada por uma “resistência difusa”, típica de seu elemento primordialmente indígena. Conforme argumenta o autor, a construção metafórico-literária do movimento baseada na cosmovisão maia que imprime um caráter humanista radicalmente crítico das relações sociais reificadas, em nada prejudicou a incorporação de elementos modernos, como o próprio pensamento marxista, por imprimir uma visão de mundo que reclama por um nacionalismo crítico, isto é, aquilo que precisamente Lênin dizia em relação a romper os limites e as contradições das nações burguesas e um espaço de luta social internacional, que aglutine um número de forças sociais e políticas capazes de lutarem e resistirem contra a penetração do capital em todas as esferas materiais e simbólicas da vida social.
Embora tenha trabalhado a dimensão imaginária das lutas camponesas e da história do campesinato, o autor poderia - como estímulo de quem aprecia o debate – não tratá-lo tão perifericamente, afinal quando se trata dos (neo)zapatistas, isso lhe fornece um lugar privilegiado nesse campo (o exemplo do velho Antônio é bastante elucidativo nesse caso).
Poucos são os pensadores brasileiros que são latino-americanos e certamente José Rubens já ocupa esse espaço. Ainda que seja um espaço pequeno, ele é largamente crítico e contundente para, quem sabe, estimular o debate entre a particularidade e a singularidade do caráter periférico latino-americano e das lutas sociais contemporâneas, provando, de uma vez por todas, a fragilidade dos enunciados neoliberais que se mostram claramente esgotados, uma vez que a história está, mais do que nunca, viva, aberta e imprevisível.
* Mestrando em Sociologia pela FFLCH-USP e bolsista CAPES.Oublicada em Lutas Sociais nº 25/26 (2º Sem. 2010 e 1º de 2011), Neils, São Paulo.
Como faco para comprar este livro? obrigado.
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