sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Trotsky e as crises econômicas do capitalismo: uma análise em perspectiva histórica

Valerio Arcary*

Não deixes que as tuas lembranças pesem
 mais do que as tuas esperanças.
 Sabedoria popular persa
  
                                                               Cuanto más fuertes los vientos, entonces más fuertes los árboles.
 Sabedoria popular argentina.
Sinto-me muito otimista sobre o futuro do pessimismo.                                                                                                                                                 Jean Rostand
Resumo
A hipótese deste artigo é que as condições objetivas de uma situação revolucionária começam a amadurecer, pelo menos, naqueles países que estão hoje mais frágeis diante das sequelas devastadoras da crise, como a Grécia, Portugal e Espanha. O impacto da crises econômicas, em certas condições políticas, pode repercutir na forma de crises sociais agudas, e estas podem evoluir para situações revolucionárias, quando uma sociedade mergulha na vertigem da decadência histórica. O argumento que procuraremos expor, inspirados pelos escritos de Leon Trotsky, é que a imaturidade subjetiva da classe trabalhadora, ou seja, a sua dificuldade de erguer e controlar organizações independentes, permanece sendo o principal fator de explicação de porque uma situação revolucionária ainda não se precipitou.

Palavras-chave
Trotsky; crise econômica; revolução; onda revolucionária.
        
A relação de causalidade entre crises econômicas e revolução é controversa, porque as crises foram condição necessária, mas não suficiente para a abertura de situações revolucionárias. Nos últimos cem anos aconteceram muito mais crises do que situações revolucionárias. As crises capitalistas ocorreram em frequência regular e, por isso, foram formuladas várias teorias, umas marxistas, outras não, para explicar o padrão do ciclo econômico industrial.
         Em contrapartida, não foi possível elaborar um esquema teórico para aferir a periodicidade de revoluções. Sabemos que quando uma situação revolucionária se abre em um país, a probabilidade de que ela se extenda aos países vizinhos que atravessam circunstâncias semelhantes, na forma de uma onda de contágio, é grande. É o que ficou conhecido como o “efeito dominó”. Em 2011, a revolução na Tunísia transformou-se em uma onda regional pelo Oriente Médio e atingiu, na sequência, o Egito, o Bahrein, o Iemen, a Líbia e a Síria, derrubando ou fazendo tremer ditaduras militares no poder por décadas. No início da década passada, entre 2001 e 2005, Argentina, Equador e Bolívia, viveram situações revolucionárias e seus governos foram derrubados como consequência de greves gerais e semi-insurreições, enquanto na Venezuela, pela primeira vez na América Latina, um golpe de Estado foi derrotado. 
       No século XX, cinco ondas revolucionárias definiram em grande medida os destinos políticos de sua história. Situações revolucionárias não são sinônimo de revoluções vitoriosas. Uma situação revolucionária está aberta quando estão reunidas as condições para que uma revolução seja possível. Uma situação revolucionária pode ser revertida antes que seja possível uma insurreição. Revoluções políticas podem ser vitoriosas ou derrotadas, mas antes do seu desenlace existiu uma situação revolucionária. Por outro lado, todas as revoluções se iniciaram como revoluções políticas, porém, só excepcionalmente radicalizaram-se em revoluções sociais anticapitalistas. O padrão das ondas revolucionárias foi pelo menos regional, às vezes semi-continental, contudo, a tendência histórica sugere que a revolução política e social da época contemporânea é um fenômeno que deve ser analisado na sua dimensão mundial, ainda que com refrações nacionais desiguais. Esta elaboração foi proposta, originalmente, por Leon Trotsky, e é um dos fundamentos da teoria da revolução permanente.
      Duas ondas precipitaram-se ao final das duas grandes guerras mundiais do século passado, atingindo os países derrotados, ou alguns daqueles sob ocupação estrangeira: a primeira com epicentro na Rússia, deslocando-se para Hungria, Áustria, Alemanha, e quase incendiando a Itália; e a segunda com epicentro na Itália e Balcãs, atingindo França, Grécia, Yugoslávia e Albânia. Uma onda abriu-se após a crise de 1929 e culminou com a derrota da revolução espanhola, quatro anos depois da ascensão do nazismo ao poder em Berlim. Uma quarta onda revolucionária abriu-se com o Maio de 1968 na França, e culminou com a revolução portuguesa de 1974/75, e teve como fator objetivo chave a combinação das derrotas militares destes Impérios coloniais, na Argélia e na África subasaariana, com as sequelas da crise econômica pós-1967/69. A última e menos compreendida onda revolucionária do século XX, entre 1989/91, foi exterior ao domínio direto do capital sobre o mercado mundial. Seu centro foi a Leste europeu e a ex-URSS.
        Demonstrou-se quase impossível prever, todavia, sem enormes margens de erro, aonde vai se abrir a próxima situação revolucionária. Se a situação política no Mediterrâneo viesse a se desenvolver nessa direção, o que é ainda incerto, as possibilidades de uma extensão à França e Itália seriam enormes, com consequências internacionais hoje inimagináveis. Pela primeira vez desde meados dos anos setenta, há quase quarenta anos de distância, este cenário se desenha, potencialmente, no horizonte. As condições objetivas são somente uma parte das condições necessárias. São as condições subjetivas, ainda imaturas, que poderiam alterar a relação de forças de forma qualitativa.
         Mas há razões para alimentarmos um maior otimismo diante da situação internacional aberta pela crise de 2008. A principal é que começaram a colocar-se em movimento alguns dos proletariados mais importantes do mundo. 

Um otimismo inquieto
         Aqueles que são associados ao legado de Leon Trotsky ficaram conhecidos pelo seu otimismo inquieto sobre o futuro do projeto socialista. Para ser justo, em algumas situações mais esperançosos, e em outras mais angustiados. Na verdade, a tradição comum de todas as principais correntes do movimento operário, desde o final do século XIX, foi a combinação de um irredutível pessimismo sobre o futuro do capitalismo, com um robusto otimismo sobre o futuro da luta dos trabalhadores. Essa convicção atravessou gerações. Por quê a confiança, e por quê a preocupação?
       A confiança repousava na percepção de que os interesses do proletariado coincidiam com os da maioria da população. Ser porta-voz dos interesses da maioria colocou os socialistas em uma condição de grande legitimidade para defender a luta contra o capital, portanto, contra a propriedade privada, que é o estatuto legal que protege o capitalismo. A preocupação se renovava na medida em que foram ficando claras as dificuldades dos trabalhadores de se libertarem da influência das ideologias e dos partidos das outras classes da sociedade, em especial, dos partidos burgueses.
        Não obstante essa herança, sempre existiu entre os marxistas uma outra opinião, muito diferente, distinta, quase oposta. A daqueles que afirmavam que otimismo ou o pessimismo seriam atitudes ou posturas ingênuas, até sentimentais, quase como diferenças de estilo, de inclinação psicológica, ou de maneiras pessoais. O marxismo acadêmico, sobretudo na segunda metade do século XX, sob a hegemonia da socialdemocracia e do estalinismo sobre os movimentos operários europeus, sentiu-se atraído pela melancolia existencial, consumido pelo desânimo ideológico, debilitado pela nostalgia programática, abatido pela frustração política. [1]
      O socialismo, para os marxistas, sempre foi, por suposto, uma luta cercada pela incerteza, uma esperança suspensa no tempo, uma aposta no futuro, uma disputa pela história, portanto, uma associação de uma análise da realidade do presente mediada pelo rigor da ciência, com uma expectativa utópica, uma espera temperada pelo ardor revolucionário. Se não se dominar o método, não se elaborará projeto. Se não se procurar a cultura, não se acumulará discernimento. Se não se construir disciplina, não poderá haver prudência. No entanto, onde não há esperança, não se tecerá determinação, onde não há paixão não se forjará disposição, onde não se emula o entusiasmo não haverá entrega.
         Foi Gramsci quem cunhou a célebre máxima: “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”. Uma análise crítica não precisa ser menos apaixonada, mas a força do desejo não deve cegar a razão. Rosa Luxemburgo deixou como reflexão a idéia de que o caminho do proletariado estaria repleto de derrotas parciais, que culminariam na vitória final, a luta pelo poder. A experiência histórica do século XX demonstrou que a dialética de vitórias e derrotas poderia mais complicada do que Rosa tinha antecipado.
         É verdade que se confirmou que as derrotas parciais podem abrir o caminho para vitórias históricas, no entanto, vitórias podem ser, também,  a antesala de derrotas. Estes conceitos não são absolutos, são relativos. O triufo político-social que significou, há cem anos atrás, a existência de sindicatos e partidos na legalidade (a redução da jornada de trabalho, ou a legislação social do salário-mínimo), alimentou gigantescas burocracias sindicais e partidárias que culminaram com a degeneração da socialdemocracia européia.
         O triunfo de cada revolução foi uma vitória histórica nacional, porém, à escala internacional, foram somente vitórias parciais. Revoluções políticas foram vitoriosas em todos os continentes, mas a maioria delas não se transformou em revoluções sociais. As revoluções sociais que foram além dos limites do capitalismo logo encontraram obstáculos objetivos e subjetivos. Desenvolveram-se contra-revoluções políticas, o estalinismo na URSS, que abriria o caminho para a restauração capitalista, verificada muitas décadas depois.

O papel do proletariado europeu dos países do Mediterrâneo
          Se não surgir uma resposta à escala européia do movimento dos trabalhadores unificado com a revolta da juventude, será impossível derrotar o ajuste que as burguesias européias precisam realizar para preservar suas posições no mercado mundial. Esse processo ainda está em disputa. Devemos nos lembrar que, nas condições atuais, a destruição da regulação social que permanece ainda a mais avançada do mundo, teria consequências internacionais. Uma derrota tão séria não poderia deixar de estabelecer uma nova relação de forças entre as classes. Essa resposta ainda pode ser construída. Ainda há tempo. O internacionalismo deixou de ser somente uma fórmula programática justa, e passou a ser uma necessidade sindical e política urgente.
          A classe trabalhadora européia do início do século XXI é diferente do proletariado de trinta anos atrás, mas isso não autoriza a conclusão de que é mais fraca. É uma classe trabalhadora menos homogênea, em várias dimensões, que a da geração anterior, porque o peso social da classe operária industrial é menor. É uma classe com mais diferenciações sociais e culturais, com menor grau de participação nas organizações que a representam. É, também, uma classe menos confiante em si mesma, desgastada depois de décadas de pequenas derrotas que foram se acumulando.
          Mas é, também, mais numerosa, mais concentrada, e muito mais instruída. É uma classe com o potencial de atrair para o seu campo uma maioria das classes médias pauperizadas. É uma classe mais consciente da amplitude internacional de sua luta e, sobretudo, muito mais crítica das velhas direções sindicais e políticas: a socialdemocracia e o estalinismo. Terá que aprender em prazos políticos curtos a grandeza real de sua força. Terá que romper com a influência dos velhos aparelhos, e construir novas organizações como instrumentos de luta para poder representar coletivamente seus interesses. Terá que descobrir a via de ruptura com os limites políticos do regime eleitoral de dominação que faz a blindagem do capital.
          Nenhuma nação pode mergulhar no abismo da decadência sem que, mais tarde ou mais cedo, as lutas de classes no seu interior se radicalizem. Estas condições objetivas, todavia, não são o bastante para que o temor se alastre entre a classe dirigente. Será necessário que desperte entre os trabalhadores e a juventude uma disposição irredutível de lutar, ou seja, de salvar o seu futuro. Nos últimos trinta anos foi essa vontade o que fez falta.

A centralidade da política
      Quando uma revolução se coloca em marcha? Duas grandes correntes de opinião dividiram o marxismo sobre o tema da aferição das relações de forças entre as classes. Podemos resumi-las como os objetivistas e os subjetivistas. Os primeiros – como Kautsky - hierarquizavam os fatores mais objetivos. Valorizaram indicadores que informam sobre a situação econômica do país: a evolução do PIB, da taxa de desemprego, do salário médio, ou ainda a proporção do peso social do proletariado sobre a população economicamente ativa, o número de votos dos partidos operários e populares, ou o número de filiados dos sindicatos. Os outros – como Lenin e Trotsky - privilegiavam a capacidade de mobilização, ou seja, as oscilações dos humores e da disposição de luta, em resumo, as flutuações da consciência de classe. Muito mais relevante que a condição ou posição de classe que é mais estática, importaria a situação de classe, que está em movimento. Porque em política, isto é, nos tempos curtos, não são as condições de existência das classes, mas a sua disposição para lutar por seus interesses que decide as relações de forças.
Claro que ignorar o impacto social e político das crises econômicas parece improdutivo na análise histórica. Em inúmeras circunstâncias históricas as crises econômicas foram a ante-sala de crises políticas, mas é tão perigoso dissolver os tempos concretos da luta de classes em tendências históricas, como é perigoso ignorar essas mesmas tendências. Quando se admite a importância das crises econômicas não se está dizendo que a miséria biológica é pré-condição de situações revolucionárias.
Se a pobreza material extrema fosse condição de situações revolucionárias seria impossível explicar o maio de 1968 na França, o outono quente na Itália em 1969, ou o verão quente de 1975 em Portugal, três das sociedades em que o trabalhador médio melhor se alimenta no mundo. A classe trabalhadora não luta com mais fúria, necessariamente, quando está desesperada pela miséria, mas quando ganha consciência do que pode perder, e acredita que pode vencer. Essa é a centralidade da política, que aumenta em condições de crise econômica, porque essa é a hora em que se decide quem vai pagar o preço da crise.
A idéia que considera que, eliminadas as condições materiais atrozes herdadas do passado pré-capitalista, a humanidade estaria poupada dos horrores das convulsões revolucionárias é insustentável. Seria impossível explicar a onda revolucionária que sacudiu a Europa do Mediterrâneo entre 1968 e 1977. Os trabalhadores urbanos não lutam somente quando têm fome, mas porque há injustiça e tirania no mundo. Lutam para defender as suas condições precárias de vida, quando compreendem que até elas estão ameaçadas. As grandes lutas populares em sociedades urbanizadas deram um salto, sempre e quando os governos decidiram medir forças com os trabalhadores e lhes impor, cirurgicamente, uma destruição do seu modo de vida.
A experiência histórica sugere que as duas seqüelas econômicas mais sérias das crises econômicas foram, historicamente, a inflação e o desemprego. Há taxas de inflação e desemprego que podem ser administradas sem que o mal estar social transborde em instabilidade política, desde que haja políticas sociais compensatórias como o salário desemprego, como podemos verificar pela experiência espanhola e alemã dos últimos quinze anos, para lembrar dois exemplos.
No entanto, no período do pós-guerra, sempre que a inflação nos países centrais superou um determinado patamar (índices acima de 10% ao ano, como na Inglaterra e na França nos anos setenta), ou os 100% ao ano, como no Brasil e Bolívia nos anos oitenta, o proletariado se colocou em movimento resistindo à desvalorização dos seus salários médios. Quando o desemprego superou os 20% da população economicamente ativa, como na Argentina nos anos noventa, o impulso das lutas dos desempregados incendiou a população plebéia e popular. A capacidade de impor condições de super-exploração variou de país para país, e dependeu da habilidade dos governos de turno em convencer o povo dos sacrifícios, porém, existiram limites sociais intransponíveis. O que nos remete, outra vez, à articulação das condições objetivas e subjetivas da situação revolucionária.

Condições objetivas e subjetivas de uma situação revolucionária
 Uma revolução se coloca em marcha quando se reúnem as condições objetivas – uma crise nacional, como definia Lênin - ou seja, quando há uma percepção generalizada de que a nação entrou em decadência, e as condições subjetivas, quando o proletariado e seus aliados sociais demonstram disposição revolucionária de luta. Essas condições amadurecem em ritmos defasados em cada experiência histórica concreta. Revoluções não tiveram por causa somente a penúria, mas o agravamento da desigualdade social e a opressão política.
 A escassez material sempre foi maior na Índia que na França, mas isso não impediu que o proletariado francês tenha sido o mais resistente aos ataques das políticas neoliberais dos anos noventa. A África do sul é o país em que o povo vive em condições, comparativamente, menos miseráveis na África sub-saariana, mas a sua classe trabalhadora foi a mais combativa nos últimos vinte anos. Eleições regulares e políticas sociais foram suficientes para manter a estabilidade política e social nos países periféricos durante o último ciclo mundial de crescimento econômico. Mas, dificilmente serão o bastante para manter a ordem, se a gravidade da crise econômica levar o capitalismo a ter que atacar as condições de vida das massas populares, e reduzir direitos conquistados.
          A experiência subjetiva da formação da consciência de classe foi, freqüentemente, mais lenta que o processo objetivo da industrialização. Parece existir um padrão histórico: em nações em que o processo de industrialização foi retardatário e que, portanto, podem oferecer custos salariais mais baixos para a indústria intensiva em mão de obra – como Brasil nos anos sessenta e setenta, e a China desde os anos noventa - as condições de super-exploração podem ser, politicamente, absorvidas, enquanto o impulso do crescimento é constante.
      Mas, paradoxalmente, quando a economia desacelera e, portanto, o desemprego aumenta, esse jovem proletariado, ainda com mentalidade semi-agrária, pode se lançar a lutas com disposição revolucionária. As palavras de Trotsky sobre o proletariado russo ressoam para a compreensão do Brasil do século XXI:
De acordo com a evolução do país, o reservatório de onde saía a classe operária russa não era um artesanato corporativo: era o meio rural; não a cidade, mas a aldeia. É preciso notar que o operariado russo não se formou paulatinamente, no decurso dos séculos, arrastando o enorme fardo do passado, como na Inglaterra, mas sim aos saltos, por meio de transformações bruscas das situações, de ligações, acordos e, ainda, por meio de rupturas com tudo o que, na véspera, existia. Foi precisamente assim – sobretudo durante o regime de opressão concentrada do czarismo – que os operários russos puderam assimilar as deduções mais ousadas do pensamento revolucionário da mesma forma que a retardatária indústria russa era capaz de compreender a última conquista da organização capitalista. [1] Ou ainda: Que dizer de nosso proletariado? Terá passado pela mesma escola medieval das confrarias de aprendizado? Existirão nele tradições corporativas seculares? Nada de parecido. Lançaram-no diretamente à fornalha, assim que o retiraram de seu arado primitivo... Daí a ausência de tradições conservadoras, a ausência de castas, mesmo entre o proletariado, e a juventude do espírito revolucionário; daí, entre outras causas eficientes, Outubro e o primeiro governo proletário que existiu no mundo. Mas daí, também, o analfabetismo, a mentalidade atrasada, a deficiência de hábitos de organização, a incapacidade de trabalhar sistematicamente, a falta de educação cultural e técnica. A cada passo nos ressentimos dessas inferioridades na nossa economia e na nossa edificação cultural. [2]
           Já sabemos que consciência de classe oscila, avança ou recua, em função da maior ou menor capacidade de resistência dos trabalhadores. Mas, enquanto uma classe existe, está convocada pela vida a se defender, e os faz por saltos, de tal maneira que um proletariado jovem e inexperiente, com pouca tradição de luta, pelas determinações do desenvolvimento desigual e combinado de cada nação, pode partir de um patamar muito baixo de organização e, no entanto, ser capaz de ações mais radicalizadas que outras classes trabalhadoras temperadas na luta através de gerações e mais organizadas.

Trotsky e as crises econômicas
           As crises econômicas não alteram somente o cenário no sistema de Estados. Elas modificam, também, a relação entre as classes, porque debilitam em alguma proporção os governos e as instituições do regime de dominação em cada país. E será no terreno da luta de classes que se decidirá quem se fortalece e quem se enfraquece, quem serão os vencedores e os vencidos. A expectativa de que todos os governos poderão sair incólumes de crises econômicas sérias não tem fundamento histórico. Somente aqueles que consigam posições relativas mais fortes poderão amenizar seu desgaste social. O que significa que  a exportação dos custos da crise conduzirá a uma exacerbação das seqüelas sociais nos elos mais frágeis da dominação imperialista mundial.
         Em setembro de 2007, a ditadura militar em Myamar (antiga Birmânia) balançou seriamente quando a juventude estudantil vestida em trajes de monges budistas saiu às ruas, arrastando mais de cem mil populares pelas ruas de Rangun, para protestar contra a miséria popular. Processos desta natureza, ou seja, explosões de fúria popular, poderão ocorrer nos próximos anos em qualquer dos cinco continentes.
          A citação de Trotsky sobre a França em 1936, depois da eleição de Leon Blum e da Frente Popular, durante a depressão que a crise de 1929 abriu, nos traz uma poderosa inspiração para a contextualização do tema da relação entre crises econômicas e revoluções: 
O partido comunista (...) se nega redondamente a tomar o caminho da luta pelo poder. A causa? “ A situação não é revolucionária”. As milícias? O armamento dos operários? O controle operário? Um plano de estatizações? Impossível! “A situação não é revolucionária”. O que se pode fazer? (...) esperar. Até que a situação se torne revolucionária por si mesma. Os sábios médicos da Internacional Comunista têm um termômetro que colocam sob a axila dessa velha que é a História e desse modo, determinam infalivelmente a temperatura revolucionária(...) A situação é  tão revolucionária quanto pode ser com a política  não-revolucionária dos partidos operários. O mais certo é dizer que a situação é pré-revolucionária. Para que ela amadureça, falta uma mobilização imediata, forte e incansável das massas em nome do socialismo.[3]
         Vale a pena retomar quatro sugestões de Trotsky sobre o tema:
(a) a hora da crise é o momento de maior vulnerabilidade do capitalismo (assim como a guerra foi a ante-sala da revolução nos países derrotados), porque a urgência de saída da crise exige um aumento da exploração do proletariado, e os ataques da burguesia podem incendiar a resistência. Mas a resposta dos trabalhadores depende, também, da atitude de suas organizações, ou seja, do impulso das lideranças;
(b) não há cataclismo econômico que, por si só, seja suficiente para ameaçar a dominação de classe. Uma situação revolucionária não se abre, unicamente, pelo choque destrutivo da crise. Não há crise econômica sem saída para o capital. Enquanto for possível descarregar os custos da crise sobre as outras classes, em especial sobre os trabalhadores, o sistema ganha tempo para se reestruturar;
(c) a hora da crise é a hora de uma disputa mais intensa intercapitalista. Toda crise econômica séria do capitalismo contemporâneo é uma crise internacional, e só pode ser compreendida a partir de um enfoque internacional, ainda que as proporções da crise sejam diferentes em cada país. A crise impõe a necessidade de uma reestruturação do mercado mundial e do sistema internacional de Estados. As lutas entre os monopólios, e entre as nações se intensificam. Alguns sairão reforçados e outros debilitados ao final da crise. O reposicionamento dos monopólios exigirá falências e fusões, e a luta entre Estados provocará tensões entre as potências e, sobretudo, uma resistência dos Estados da periferia às pressões recolonizadoras dos Estados imperialistas;
(d) é inimaginável uma situação revolucionária sem confiança das massas trabalhadoras em si mesmas, sem que se desenvolva o “instinto de poder”, sem que elas se posicionem, mesmo que seja instintivamente e por dentro das regras do regime, para derrubar o governo de turno. A crença na possibilidade de vitória é pré-condição da disposição de lutar, e sem mobilização independente não é possível uma revolução. Essas quatro conclusões históricas são indivisíveis.
         Enfim, sob a pressão de uma crise econômica, a evolução da realidade política é indeterminada, mas a tendência é a desestabilização, mesmo nos países centrais. Um país pode sofrer uma crise devastadora sem que a ordem dominante seja desafiada, como os EUA ou a Inglaterra depois da crise de 1929, enquanto em outros países, como na Alemanha, na Espanha ou França pode se abrir uma situação revolucionária. Se os trabalhadores e seus aliados sociais não encontrarem um ponto de apoio nas suas organizações para desafiar a exploração capitalista, a oportunidade de transformação se perderá. Resumindo, Trotsky insiste na idéia de que as condições objetivas da situação revolucionária (a decadência da nação em relação a um período histórico anterior) se antecipam à maturação das subjetivas (a disposição do proletariado de lutar pelo poder). Adverte que o tempo da situação revolucionária é o intervalo em que este atraso pode ser superado. As crises econômicas podem ser o catalizador da aceleração dos tempos políticos. Em outras palavras, revoluções aconteceram porque foram necessárias, mas não quando foram necessárias.
         Isto posto, não é incomum que se associe o conceito de revolução e o de socialismo. Embora plausível, essa relação é mais complicada do que parece. Mais complicada, porque a maior parte das lideranças de esquerda se definiu nos últimos cem anos como socialistas, mas insistiu em deixar claro que não eram revolucionários. Mais complexa, também, porque as revoluções são uma tendência histórica, enquanto o socialismo é somente uma possibilidade história. São, portanto, dimensões diferentes do problema da transição pós-capitalista. A maioria dos trabalhadores das sociedades urbanizadas aderiu ao longo do século XX a alguma variante de projeto socialista. A principal exceção foi o proletariado norte-americano. Mas essa mesma maioria dos trabalhadores permaneceu leal às expectativas reformistas de seus dirigentes. Desejavam o socialismo, mas temiam a revolução.

 Trotsky e a avaliação da crise de 1929

    As crises econômicas da época contemporânea foram, por definição, crises internacionais, mas não se manifestaram da mesma forma em todos os países. A crise mundial de 1929 foi muito mais severa nos EUA e na Alemanha, do que no Brasil ou na Colômbia, ou seja, os seus efeitos destrutivos foram mais acentuados naqueles países onde a industrialização era mais avançada, do que naqueles onde a maior parte do PIB ainda dependia da mineração, da agricultura ou da pecuária. As crises econômicas contemporâneas foram, também, mais devastadoras nas nações mais integradas no mercado mundial, do que naquelas com economias mais isoladas, autárquicas, ou menos internacionalizadas.
       A crise iniciada em 2008 foi caracterizada como a mais perigosa desde 1929, e já significou uma mudança na relação de forças entre as corporações concorrentes, e entre os Estados. Como aconteceu em outras circunstâncias, por exemplo, quando da crise das dívidas externas latino americanas nos anos oitenta do século XX que atingiu duramente a Argentina e o Brasil, alguns países sofrerão mais do que outros, e mergulharão em decadência por um período histórico indefinido. A Grécia vive um processo de semicolonização que teve como maior indicador a presença de um interventor do Banco Central Europeu na vigilância de seu Ministério das Finanças. Portugal caminha na mesma direção.
         Não obstante, são as transformações nas posições relativas das economias nacionais no mercado mundial que terão conseqüências mais duradouras. A Itália respondia por 5% das exportações mundiais há somente dez anos atrás e, em 2011, sua participação caiu para 3%.[4] Enquanto algumas nações mergulham em uma etapa de decadência nacional crônica, como o Estado Espanhol e a Irlanda, outros como a Alemanha agigantam sua força no sistema Internacional de Estados.
       A citação de Trotsky nos ajuda a recordar que a posição da URSS se fortaleceu na primeira metade dos anos trinta do século XX, porque a República dos Sovietes foi poupada da destruição que atingiu, a partir de 1929, o centro do capitalismo:
A etapa que estamos vivendo se caracteriza pelo fato de que o capitalismo se afundou ainda mais profundamente no marasmo da crise, enquanto a União Soviética avançou em uma proporção que cresce constantemente. O perigo consiste em que na próxima etapa o mundo possa apresentar um panorama até certo ponto oposto. Mais especificamente, o capitalismo sairá da crise e na União Soviética explodirão todas as contradições (...) Nos prognósticos políticos há que considerar as melhores e as piores hipóteses. A realidade se desenvolverá em algum ponto entre as duas, ainda que podemos temer que se aproximará mais da pior que da melhor.[5]
       A posição relativa da América Latina se alterou então, também, favoravelmente, porque os governos Cárdenas e Vargas suspenderam o pagamento de suas dívidas externas, aproveitando-se do debilitamento dos EUA. Contudo, a passagem de Trotsky nos remete a uma contextualização mais complexa, porque fez o prognóstico de que os EUA, apesar de mais atingidos pela crise de 1929 do que a Europa e, sobretudo, do que a URSS, poderiam sair muito mais fortalecidos da década de trinta do que Moscou.
        Não foram necessários muitos anos para a verificação desse vaticínio, porque já em 1936 a URSS mergulhou no pesadelo histórico dos processos de Moscou, e a desestruturação social e política aumentou ininterruptamente, até à catastrófica destruição quando da invasão nazista. Em outro texto da mesma época Trotsky pontuou:
Creio que a América do Norte criará o mais colossal sistema militar de terra, mar e ar que se possa imaginar. A superação definitiva de seu velho provincianismo, a luta por mercados, o crescimento do armamentismo, a política mundial ativa e a experiência da crise atual, tudo isso introduzirá mudanças profundas na vida dos Estados Unidos. Para resumir se pode dizer que a União Soviética se americanizará, que a Europa se sovietizará ou cairá no fascismo, e que os Estados Unidos se europeizarão politicamente.[6]  
         Esta segunda transcrição foi ainda mais profética ao desenhar a possibilidade, naquele momento impensável, de uma fascistização da Europa, se não triunfasse a revolução na Alemanha.[7]
          As mudanças nas posições relativas de cada país no sistema internacional de Estados acontecem hoje mais rapidamente que antes, ainda que essas mudanças sejam mais lentas que a alteração do lugar de cada economia nacional no mercado mundial. O mundo nunca esteve tão tão unificado, economicamente, como neste início do século XXI, mas o capitalismo foi incapaz de superar os obstáculos colocados pela permanência de fronteiras nacionais. Não há senão uma simulação de coordenação internacional, essencialmente, negociada pelos países do G-7, liderado pelos EUA. O sistema internacional de Estados continua preservando uma forma anacrônica e rígida. Nenhum país da periferia alterou, substantivamente, sua inserção política mundial. 

 O perigo de uma depressão não foi superado

      Existem acontecimentos que despertam imediatamente o assombro generalizado porque a força de impacto de sua importância é instantânea. Foi assim com o Maio de 68 na França e a Primavera de Praga, a revolução portuguesa em 1974/75, a revolução sandinista e iraniana em 1979, a greve dos estaleiros de Gdansk em 1980, a queda de Baby Doc Duvalier no Haiti em 1986 ou, mais recentemente, a queda de De La Rua em Buenos Aires em 2001, a derrota do golpe contra Chávez na Venezuela em 2002, ou a deposição de Gonzalo de Losada na Bolívia em 2003. Contra-revoluções podem ser igualmente imponentes, porque provocam o horror imediato: foi assim no Chile de Pinochet em 1973, ou na Argentina de Videla em 1976, ou ainda na Praça Tian An Men na China em 1979.
         Mas existem, por outro lado, processos cuja percepção é muitíssimo mais difícil, e o seu terrível significado só é apreendido anos depois. Às vezes, muitos anos depois. Porque há decisões que são tomadas entre quatro paredes pelos poderosos do mundo para manter a ordem, mas que são apresentadas diante das massas como sendo a defesa de suas aspirações. Foi assim ao final da II Guerra Mundial quando, em Yalta e Potsdam, a vitória revolucionária contra o nazi-fascismo foi usurpada para garantir a coexistência pacífica, garantindo a preservação do capitalismo na Europa do Mediterrâneo, e salvando Salazar e Franco por mais três décadas. As sequelas da crise econômica internacional aberta em 2008 permanecem confusas porque seu significado ainda está em disputa.     
        Crises econômicas são hecatombes destrutivas, mas a destruição de capital atinge em cada crise alguns continentes mais do que outros, alguns países mais do que outros, mergulhando as nações mais vulneráveis em um processo de regressão social cujas sequelas podem ser irreversíveis. A ameaça de que a recessão européia, associada à fragilidade da recuperação norte-americana e à desaceleração chinesa possam ser o prelúdio de uma depressão decenal ainda está colocada. A hora das grandes lutas não ficou para trás. Está nos anos por vir.
* Professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) e doutor em História pela USP.


[1] TROTSKY, L. A História da revolução russa. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1977, p. 29-30.
[2] TROTSKY, L. Idem, p. 391 – Apêndice I.
[3] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? São Paulo: Editora Desafio, 1994, p. 61-62.
[4] Uma das novas características mais importantes do capitalismo do início do ´seculo XXI foi a aceleração do comércio mundial em comparação ao crescimento dos PIBs nacionais, revelando a crescente internacionalização, portanto, expansão do mercado mundial. O comércio mundial teve, em 2010, um crescimento quatro vezes maior do que o crescimento do PIB mundial. As economias dos EUA, da Alemanha e da China responderam por 28% das trocas da economia mundial em 2010. http://www.wto.org/french/res_f/statis_f/its2011_f/its11_highlights1_f.pdf
Consulta em março de 2011.
[5] TROTSKY, Leon. Algumas idéias sobre a etapa e as tarefas da oposição de esquerda. Escritos, Tomo II, 1930-31, volume 2. Bogotá: Editorial Pluma, 1977, p.427. (tradução nossa)
[6] TROTSKY, Leon. Respostas ao New York Times. Escritos, Tomo III, 1932, volume 1. Bogotá: Editorial Pluma, 1977, p.76. (tradução nossa)
[7] Rosa Luxemburgo compartilhava uma apreciação semelhante a de Trotsky sobre a dinâmica histórica do capitalismo, anunciando uma diminuição do intervalo entre as crises, e crescentes dificuldades de retomar o crescimento, ou seja, a previsão de uma tendência à estagnação: “ Se a produção capitalista gera um mercado suficiente para si, a acumulação capitalista (considerada objetivamente) é um processo ilimitado. Se a produção pode sobreviver, continuar a crescer sem obstáculos, isto é, se pode desenvolver as forças produtivas ilimitadamente,(...) desmorona um dos mais fortes pilares do socialismo de Marx.(...) Mas (...) o sistema capitalista é economicamente insustentável. (...) Se, no entanto, aceitarmos com os "especialistas " o caráter econômico ilimitado da acumulação capitalista, o socialismo perde o piso granítico da necessidade histórica objetiva. Ficamos perdidos nas nebulosidades dos sistemas pré-marxistas que queriam deduzir o socialismo somente da injustiça e maldade do mundo, e da decisão revolucionária das classes trabalhadoras”.  LUXEMBURGO, Rosa, “El Problema en discusión” in La acumulacion de Capital, México, Cuadernos de pasado y Presente 51, 1980, p.31. Este ensaio é também conhecido como a Anticrítica.

[1] ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Lisboa, Afrontamento ,1976. p. 23).

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