Valerio
Arcary*
Não deixes que as tuas lembranças pesem
mais do que as tuas esperanças.
Sabedoria
popular persa
Cuanto más fuertes los vientos, entonces más fuertes los árboles.
Sabedoria popular argentina.
Sinto-me
muito otimista sobre o futuro do pessimismo.
Jean Rostand
Resumo
A
hipótese deste artigo é que as condições objetivas de uma situação
revolucionária começam a amadurecer, pelo menos, naqueles países que estão hoje
mais frágeis diante das sequelas devastadoras da crise, como a Grécia, Portugal
e Espanha. O impacto da crises econômicas, em certas condições políticas, pode
repercutir na forma de crises sociais agudas, e estas podem evoluir para
situações revolucionárias, quando uma sociedade mergulha na vertigem da
decadência histórica. O argumento que procuraremos expor, inspirados pelos
escritos de Leon Trotsky, é que a imaturidade subjetiva da classe trabalhadora,
ou seja, a sua dificuldade de erguer e controlar organizações independentes,
permanece sendo o principal fator de explicação de porque uma situação
revolucionária ainda não se precipitou.
Palavras-chave
Trotsky;
crise econômica; revolução; onda revolucionária.
A relação de causalidade entre crises
econômicas e revolução é controversa, porque as crises foram condição necessária,
mas não suficiente para a abertura de situações revolucionárias. Nos últimos
cem anos aconteceram muito mais crises do que situações revolucionárias. As
crises capitalistas ocorreram em frequência regular e, por isso, foram formuladas
várias teorias, umas marxistas, outras não, para explicar o padrão do ciclo
econômico industrial.
Em contrapartida, não foi possível
elaborar um esquema teórico para aferir a periodicidade de revoluções. Sabemos
que quando uma situação revolucionária se abre em um país, a probabilidade de
que ela se extenda aos países vizinhos que atravessam circunstâncias
semelhantes, na forma de uma onda de contágio, é grande. É o que ficou
conhecido como o “efeito dominó”. Em 2011, a revolução na Tunísia
transformou-se em uma onda regional pelo Oriente Médio e atingiu, na sequência,
o Egito, o Bahrein, o Iemen, a Líbia e a Síria, derrubando ou fazendo tremer
ditaduras militares no poder por décadas. No início da década passada, entre
2001 e 2005, Argentina, Equador e Bolívia, viveram situações revolucionárias e
seus governos foram derrubados como consequência de greves gerais e
semi-insurreições, enquanto na Venezuela, pela primeira vez na América Latina,
um golpe de Estado foi derrotado.
No século XX, cinco ondas revolucionárias
definiram em grande medida os destinos políticos de sua história. Situações
revolucionárias não são sinônimo de revoluções vitoriosas. Uma situação
revolucionária está aberta quando estão reunidas as condições para que uma
revolução seja possível. Uma situação revolucionária pode ser revertida antes
que seja possível uma insurreição. Revoluções políticas podem ser vitoriosas ou
derrotadas, mas antes do seu desenlace existiu uma situação revolucionária. Por
outro lado, todas as revoluções se iniciaram como revoluções políticas, porém,
só excepcionalmente radicalizaram-se em revoluções sociais anticapitalistas. O
padrão das ondas revolucionárias foi pelo menos regional, às vezes
semi-continental, contudo, a tendência histórica sugere que a revolução
política e social da época contemporânea é um fenômeno que deve ser analisado
na sua dimensão mundial, ainda que com refrações nacionais desiguais. Esta
elaboração foi proposta, originalmente, por Leon Trotsky, e é um dos
fundamentos da teoria da revolução permanente.
Duas ondas precipitaram-se ao final das
duas grandes guerras mundiais do século passado, atingindo os países
derrotados, ou alguns daqueles sob ocupação estrangeira: a primeira com
epicentro na Rússia, deslocando-se para Hungria, Áustria, Alemanha, e quase
incendiando a Itália; e a segunda com epicentro na Itália e Balcãs, atingindo
França, Grécia, Yugoslávia e Albânia. Uma onda abriu-se após a crise de 1929 e
culminou com a derrota da revolução espanhola, quatro anos depois da ascensão
do nazismo ao poder em Berlim. Uma quarta onda revolucionária abriu-se com o
Maio de 1968 na França, e culminou com a revolução portuguesa de 1974/75, e
teve como fator objetivo chave a combinação das derrotas militares destes
Impérios coloniais, na Argélia e na África subasaariana, com as sequelas da
crise econômica pós-1967/69. A última e menos compreendida onda revolucionária
do século XX, entre 1989/91, foi exterior ao domínio direto do capital sobre o
mercado mundial. Seu centro foi a Leste europeu e a ex-URSS.
Demonstrou-se quase impossível prever, todavia,
sem enormes margens de erro, aonde vai se abrir a próxima situação
revolucionária. Se a situação política no Mediterrâneo viesse a se desenvolver
nessa direção, o que é ainda incerto, as possibilidades de uma extensão à
França e Itália seriam enormes, com consequências internacionais hoje
inimagináveis. Pela primeira vez desde meados dos anos setenta, há quase
quarenta anos de distância, este cenário se desenha, potencialmente, no horizonte.
As condições objetivas são somente uma parte das condições necessárias. São as
condições subjetivas, ainda imaturas, que poderiam alterar a relação de forças
de forma qualitativa.
Mas há razões para alimentarmos um
maior otimismo diante da situação internacional aberta pela crise de 2008. A
principal é que começaram a colocar-se em movimento alguns dos proletariados
mais importantes do mundo.
Um otimismo inquieto
Aqueles que são associados ao legado
de Leon Trotsky ficaram conhecidos pelo seu otimismo inquieto sobre o futuro do
projeto socialista. Para ser justo, em algumas situações mais esperançosos, e
em outras mais angustiados. Na verdade, a tradição comum de todas as principais
correntes do movimento operário, desde o final do século XIX, foi a combinação
de um irredutível pessimismo sobre o futuro do capitalismo, com um robusto
otimismo sobre o futuro da luta dos trabalhadores. Essa convicção atravessou
gerações. Por quê a confiança, e por quê a preocupação?
A confiança repousava na percepção de
que os interesses do proletariado coincidiam com os da maioria da população.
Ser porta-voz dos interesses da maioria colocou os socialistas em uma condição
de grande legitimidade para defender a luta contra o capital, portanto, contra
a propriedade privada, que é o estatuto legal que protege o capitalismo. A
preocupação se renovava na medida em que foram ficando claras as dificuldades
dos trabalhadores de se libertarem da influência das ideologias e dos partidos
das outras classes da sociedade, em especial, dos partidos burgueses.
Não obstante essa herança, sempre
existiu entre os marxistas uma outra opinião, muito diferente, distinta, quase
oposta. A daqueles que afirmavam que otimismo ou o pessimismo seriam atitudes
ou posturas ingênuas, até sentimentais, quase como diferenças de estilo, de
inclinação psicológica, ou de maneiras pessoais. O marxismo acadêmico,
sobretudo na segunda metade do século XX, sob a hegemonia da socialdemocracia e
do estalinismo sobre os movimentos operários europeus, sentiu-se atraído pela
melancolia existencial, consumido pelo desânimo ideológico, debilitado pela
nostalgia programática, abatido pela frustração política. [1]
O socialismo, para os marxistas, sempre
foi, por suposto, uma luta cercada pela incerteza, uma esperança suspensa no
tempo, uma aposta no futuro, uma disputa pela história, portanto, uma
associação de uma análise da realidade do presente mediada pelo rigor da
ciência, com uma expectativa utópica, uma espera temperada pelo ardor
revolucionário. Se não se dominar o método, não se elaborará projeto. Se não se
procurar a cultura, não se acumulará discernimento. Se não se construir
disciplina, não poderá haver prudência. No entanto, onde não há esperança, não se
tecerá determinação, onde não há paixão não se forjará disposição, onde não se
emula o entusiasmo não haverá entrega.
Foi Gramsci quem cunhou a célebre máxima:
“pessimismo da inteligência, otimismo da
vontade”. Uma análise crítica não precisa ser menos apaixonada, mas a força
do desejo não deve cegar a razão. Rosa Luxemburgo deixou como reflexão a idéia
de que o caminho do proletariado estaria repleto de derrotas parciais, que
culminariam na vitória final, a luta pelo poder. A experiência histórica do
século XX demonstrou que a dialética de vitórias e derrotas poderia mais
complicada do que Rosa tinha antecipado.
É
verdade que se confirmou que as derrotas parciais podem abrir o caminho para
vitórias históricas, no entanto, vitórias podem ser, também, a antesala de derrotas. Estes conceitos não
são absolutos, são relativos. O triufo político-social que significou, há cem
anos atrás, a existência de sindicatos e partidos na legalidade (a redução da
jornada de trabalho, ou a legislação social do salário-mínimo), alimentou
gigantescas burocracias sindicais e partidárias que culminaram com a
degeneração da socialdemocracia européia.
O triunfo de cada revolução foi uma
vitória histórica nacional, porém, à escala internacional, foram somente
vitórias parciais. Revoluções políticas foram vitoriosas em todos os
continentes, mas a maioria delas não se transformou em revoluções sociais. As
revoluções sociais que foram além dos limites do capitalismo logo encontraram
obstáculos objetivos e subjetivos. Desenvolveram-se contra-revoluções
políticas, o estalinismo na URSS, que abriria o caminho para a restauração
capitalista, verificada muitas décadas depois.
O papel do proletariado europeu dos países do Mediterrâneo
Se não surgir uma resposta à escala
européia do movimento dos trabalhadores unificado com a revolta da juventude, será impossível derrotar o ajuste que as
burguesias européias precisam realizar para preservar suas posições no mercado
mundial. Esse processo ainda está em disputa. Devemos nos lembrar que,
nas condições atuais, a destruição da regulação social que permanece ainda a
mais avançada do mundo, teria
consequências internacionais. Uma
derrota tão séria não poderia deixar de estabelecer uma nova relação de forças
entre as classes. Essa resposta ainda pode ser construída. Ainda há tempo. O
internacionalismo deixou de ser somente uma fórmula programática justa, e
passou a ser uma necessidade sindical e política urgente.
A
classe trabalhadora européia do início do século XXI é diferente do
proletariado de trinta anos atrás, mas isso não autoriza a conclusão de que é
mais fraca. É uma classe trabalhadora menos homogênea, em várias dimensões, que
a da geração anterior, porque o peso social da classe operária industrial é
menor. É uma classe com mais diferenciações sociais e culturais, com menor grau
de participação nas organizações que a representam. É, também, uma classe menos
confiante em si mesma, desgastada depois de décadas de pequenas derrotas que
foram se acumulando.
Mas
é, também, mais numerosa, mais concentrada, e muito mais instruída. É uma
classe com o potencial de atrair para o seu campo uma maioria das classes
médias pauperizadas. É uma classe mais consciente da amplitude internacional de
sua luta e, sobretudo, muito mais crítica das velhas direções sindicais e
políticas: a socialdemocracia e o estalinismo. Terá que aprender em prazos
políticos curtos a grandeza real de sua força. Terá que romper com a influência
dos velhos aparelhos, e construir novas organizações como instrumentos de luta
para poder representar coletivamente seus interesses. Terá que descobrir a via
de ruptura com os limites políticos do regime eleitoral de dominação que faz a
blindagem do capital.
Nenhuma
nação pode mergulhar no abismo da decadência sem que, mais tarde ou mais cedo,
as lutas de classes no seu interior se radicalizem. Estas condições objetivas,
todavia, não são o bastante para que o temor se alastre entre a classe
dirigente. Será necessário que desperte entre os trabalhadores e a juventude
uma disposição irredutível de lutar, ou seja, de salvar o seu futuro. Nos
últimos trinta anos foi essa vontade o que fez falta.
A
centralidade da política
Quando uma
revolução se coloca em marcha? Duas grandes correntes de opinião dividiram o
marxismo sobre o tema da aferição das relações de forças entre as classes. Podemos
resumi-las como os objetivistas e os subjetivistas. Os primeiros – como Kautsky
- hierarquizavam os fatores mais objetivos. Valorizaram indicadores que
informam sobre a situação econômica do país: a evolução do PIB, da taxa de
desemprego, do salário médio, ou ainda a proporção do peso social do
proletariado sobre a população economicamente ativa, o número de votos dos
partidos operários e populares, ou o número de filiados dos sindicatos. Os
outros – como Lenin e Trotsky - privilegiavam a capacidade de mobilização, ou
seja, as oscilações dos humores e da disposição de luta, em resumo, as
flutuações da consciência de classe. Muito mais relevante que a condição ou posição
de classe que é mais estática, importaria a situação de classe, que
está em movimento. Porque em política, isto é, nos tempos curtos, não são as condições de existência das
classes, mas a sua disposição para lutar por seus interesses que decide
as relações de forças.
Claro que ignorar
o impacto social e político das crises econômicas parece improdutivo na análise
histórica. Em inúmeras circunstâncias históricas as crises econômicas foram a
ante-sala de crises políticas, mas é tão perigoso dissolver os tempos concretos
da luta de classes em tendências históricas, como é perigoso ignorar essas
mesmas tendências. Quando se admite a importância das crises econômicas não se
está dizendo que a miséria biológica é pré-condição de situações
revolucionárias.
Se a pobreza material
extrema fosse condição de
situações revolucionárias seria impossível explicar o maio de 1968 na França, o
outono quente na Itália em 1969, ou o verão quente de 1975 em Portugal, três
das sociedades em que o trabalhador médio melhor se alimenta no mundo. A
classe trabalhadora não luta com mais fúria, necessariamente, quando está
desesperada pela miséria, mas quando ganha consciência do que pode perder, e
acredita que pode vencer. Essa é a centralidade da política, que aumenta em
condições de crise econômica, porque essa é a hora em que se decide quem vai
pagar o preço da crise.
A idéia que considera que, eliminadas
as condições materiais atrozes herdadas do passado pré-capitalista, a
humanidade estaria poupada dos horrores das convulsões revolucionárias é
insustentável. Seria impossível explicar a onda revolucionária que sacudiu a
Europa do Mediterrâneo entre 1968 e 1977. Os trabalhadores urbanos não lutam
somente quando têm fome, mas porque há injustiça e tirania no mundo. Lutam para
defender as suas condições precárias de vida, quando compreendem que até elas
estão ameaçadas. As grandes lutas populares em sociedades urbanizadas deram um
salto, sempre e quando os governos decidiram medir forças com os trabalhadores
e lhes impor, cirurgicamente, uma destruição do seu modo de vida.
A experiência histórica sugere que as duas
seqüelas econômicas mais sérias das crises econômicas foram, historicamente, a
inflação e o desemprego. Há taxas de inflação e desemprego que podem ser
administradas sem que o mal estar social transborde em instabilidade política,
desde que haja políticas sociais compensatórias como o salário desemprego, como
podemos verificar pela experiência espanhola e alemã dos últimos quinze anos,
para lembrar dois exemplos.
No entanto, no período do pós-guerra, sempre que
a inflação nos países centrais superou um determinado patamar (índices acima de
10% ao ano, como na Inglaterra e na França nos anos setenta), ou os 100% ao
ano, como no Brasil e Bolívia nos anos oitenta, o proletariado se colocou em
movimento resistindo à desvalorização dos seus salários médios. Quando o
desemprego superou os 20% da população economicamente ativa, como na Argentina
nos anos noventa, o impulso das lutas dos desempregados incendiou a população
plebéia e popular. A capacidade de impor condições de super-exploração variou
de país para país, e dependeu da habilidade dos governos de turno em convencer
o povo dos sacrifícios, porém, existiram limites sociais intransponíveis. O que
nos remete, outra vez, à articulação das condições objetivas e subjetivas da
situação revolucionária.
Condições
objetivas e subjetivas de uma situação revolucionária
Uma
revolução se coloca em marcha quando se reúnem as condições objetivas – uma
crise nacional, como definia Lênin - ou seja, quando há uma percepção
generalizada de que a nação entrou em decadência, e as condições subjetivas,
quando o proletariado e seus aliados sociais demonstram disposição
revolucionária de luta. Essas condições amadurecem em ritmos defasados em cada
experiência histórica concreta. Revoluções não tiveram por causa somente a
penúria, mas o agravamento da desigualdade social e a opressão política.
A
escassez material sempre foi maior na Índia que na França, mas isso não impediu
que o proletariado francês tenha sido o mais resistente aos ataques das
políticas neoliberais dos anos noventa. A África do sul é o país em que o povo
vive em condições, comparativamente, menos miseráveis na África sub-saariana,
mas a sua classe trabalhadora foi a mais combativa nos últimos vinte anos. Eleições
regulares e políticas sociais foram suficientes para manter a estabilidade
política e social nos países periféricos durante o último ciclo mundial de
crescimento econômico. Mas, dificilmente serão o bastante para manter a ordem,
se a gravidade da crise econômica levar o capitalismo a ter que atacar as
condições de vida das massas populares, e reduzir direitos conquistados.
A experiência subjetiva da formação
da consciência de classe foi, freqüentemente, mais lenta que o processo
objetivo da industrialização. Parece existir um padrão histórico: em nações em
que o processo de industrialização foi retardatário e que, portanto, podem
oferecer custos salariais mais baixos para a indústria intensiva em mão de obra
– como Brasil nos anos sessenta e setenta, e a China desde os anos noventa - as
condições de super-exploração podem ser, politicamente, absorvidas, enquanto o
impulso do crescimento é constante.
Mas, paradoxalmente, quando a economia
desacelera e, portanto, o desemprego aumenta, esse jovem proletariado, ainda
com mentalidade semi-agrária, pode se lançar a lutas com disposição
revolucionária. As palavras de Trotsky sobre o proletariado russo ressoam para
a compreensão do Brasil do século XXI:
De acordo com a evolução do país, o reservatório
de onde saía a classe operária russa não era um artesanato corporativo: era o
meio rural; não a cidade, mas a aldeia. É preciso notar que o operariado russo
não se formou paulatinamente, no decurso dos séculos, arrastando o enorme fardo
do passado, como na Inglaterra, mas sim aos saltos, por meio de transformações
bruscas das situações, de ligações, acordos e, ainda, por meio de rupturas com
tudo o que, na véspera, existia. Foi precisamente assim – sobretudo durante o
regime de opressão concentrada do czarismo – que os operários russos puderam
assimilar as deduções mais ousadas do pensamento revolucionário da mesma forma
que a retardatária indústria russa era capaz de compreender a última conquista
da organização capitalista. [1] Ou ainda: Que dizer de nosso proletariado? Terá
passado pela mesma escola medieval das confrarias de aprendizado? Existirão
nele tradições corporativas seculares? Nada de parecido. Lançaram-no
diretamente à fornalha, assim que o retiraram de seu arado primitivo... Daí a
ausência de tradições conservadoras, a ausência de castas, mesmo entre o
proletariado, e a juventude do espírito revolucionário; daí, entre outras
causas eficientes, Outubro e o primeiro governo proletário que existiu no
mundo. Mas daí, também, o analfabetismo, a mentalidade atrasada, a deficiência
de hábitos de organização, a incapacidade de trabalhar sistematicamente, a
falta de educação cultural e técnica. A cada passo nos ressentimos dessas
inferioridades na nossa economia e na nossa edificação cultural. [2]
Já sabemos que consciência de classe
oscila, avança ou recua, em função da maior ou menor capacidade de resistência
dos trabalhadores. Mas, enquanto uma classe existe, está convocada pela vida a
se defender, e os faz por saltos, de tal maneira que um proletariado jovem e
inexperiente, com pouca tradição de luta, pelas determinações do
desenvolvimento desigual e combinado de cada nação, pode partir de um patamar
muito baixo de organização e, no entanto, ser capaz de ações mais radicalizadas
que outras classes trabalhadoras temperadas na luta através de gerações e mais
organizadas.
Trotsky e as crises
econômicas
As crises econômicas não alteram
somente o cenário no sistema de Estados. Elas modificam, também, a relação
entre as classes, porque debilitam em alguma proporção os governos e as
instituições do regime de dominação em cada país. E será no terreno da luta de
classes que se decidirá quem se fortalece e quem se enfraquece, quem serão os
vencedores e os vencidos. A expectativa de que todos os governos poderão sair
incólumes de crises econômicas sérias não tem fundamento histórico. Somente
aqueles que consigam posições relativas mais fortes poderão amenizar seu
desgaste social. O que significa que a
exportação dos custos da crise conduzirá a uma exacerbação das seqüelas sociais
nos elos mais frágeis da dominação imperialista mundial.
Em setembro de 2007, a ditadura
militar em Myamar (antiga Birmânia) balançou seriamente quando a juventude
estudantil vestida em trajes de monges budistas saiu às ruas, arrastando mais
de cem mil populares pelas ruas de Rangun, para protestar contra a miséria
popular. Processos desta natureza, ou seja, explosões de fúria popular, poderão
ocorrer nos próximos anos em qualquer dos cinco continentes.
A citação de Trotsky sobre a França
em 1936, depois da eleição de Leon Blum e da Frente Popular, durante a
depressão que a crise de 1929 abriu, nos traz uma poderosa inspiração para a
contextualização do tema da relação entre crises econômicas e revoluções:
O partido comunista (...) se nega redondamente a
tomar o caminho da luta pelo poder. A causa? “ A situação não é
revolucionária”. As milícias? O armamento dos operários? O controle operário?
Um plano de estatizações? Impossível! “A situação não é revolucionária”. O que
se pode fazer? (...) esperar. Até que a situação se torne revolucionária por si
mesma. Os sábios médicos da Internacional Comunista têm um termômetro que
colocam sob a axila dessa velha que é a História e desse modo, determinam
infalivelmente a temperatura revolucionária(...) A situação é tão revolucionária
quanto pode ser com a política
não-revolucionária dos partidos operários. O mais certo é dizer
que a situação é pré-revolucionária. Para que ela amadureça, falta uma
mobilização imediata, forte e incansável das massas em nome do socialismo.[3]
Vale a pena retomar quatro sugestões
de Trotsky sobre o tema:
(a)
a hora da crise é o momento de maior vulnerabilidade do capitalismo (assim como
a guerra foi a ante-sala da revolução nos países derrotados), porque a urgência
de saída da crise exige um aumento da exploração do proletariado, e os ataques
da burguesia podem incendiar a resistência. Mas a resposta dos trabalhadores
depende, também, da atitude de suas organizações, ou seja, do impulso das
lideranças;
(b)
não há cataclismo econômico que, por si só, seja suficiente para ameaçar a
dominação de classe. Uma situação revolucionária não se abre, unicamente, pelo
choque destrutivo da crise. Não há crise econômica sem saída para o capital.
Enquanto for possível descarregar os custos da crise sobre as outras classes,
em especial sobre os trabalhadores, o sistema ganha tempo para se reestruturar;
(c)
a hora da crise é a hora de uma disputa mais intensa intercapitalista. Toda
crise econômica séria do capitalismo contemporâneo é uma crise internacional, e
só pode ser compreendida a partir de um enfoque internacional, ainda que as
proporções da crise sejam diferentes em cada país. A crise impõe a necessidade
de uma reestruturação do mercado mundial e do sistema internacional de Estados.
As lutas entre os monopólios, e entre as nações se intensificam. Alguns sairão
reforçados e outros debilitados ao final da crise. O reposicionamento dos
monopólios exigirá falências e fusões, e a luta entre Estados provocará tensões
entre as potências e, sobretudo, uma resistência dos Estados da periferia às
pressões recolonizadoras dos Estados imperialistas;
(d)
é inimaginável uma situação revolucionária sem confiança das massas
trabalhadoras em si mesmas, sem que se desenvolva o “instinto de poder”, sem
que elas se posicionem, mesmo que seja instintivamente e por dentro das regras
do regime, para derrubar o governo de turno. A crença na possibilidade de
vitória é pré-condição da disposição de lutar, e sem mobilização independente
não é possível uma revolução. Essas quatro conclusões históricas são
indivisíveis.
Enfim, sob a pressão de uma crise
econômica, a evolução da realidade política é indeterminada, mas a tendência é
a desestabilização, mesmo nos países centrais. Um país pode sofrer uma crise
devastadora sem que a ordem dominante seja desafiada, como os EUA ou a
Inglaterra depois da crise de 1929, enquanto em outros países, como na
Alemanha, na Espanha ou França pode se abrir uma situação revolucionária. Se os
trabalhadores e seus aliados sociais não encontrarem um ponto de apoio nas suas
organizações para desafiar a exploração capitalista, a oportunidade de
transformação se perderá. Resumindo, Trotsky insiste na idéia de que as condições objetivas da situação revolucionária (a
decadência da nação em relação a um período histórico anterior) se antecipam à
maturação das subjetivas (a disposição do proletariado de lutar pelo poder).
Adverte que o tempo da situação revolucionária é o intervalo em que este atraso
pode ser superado. As crises econômicas podem ser o catalizador da aceleração
dos tempos políticos. Em outras palavras, revoluções
aconteceram porque foram necessárias, mas não quando foram necessárias.
Isto posto, não é incomum que se
associe o conceito de revolução e o de socialismo. Embora plausível, essa
relação é mais complicada do que parece. Mais complicada, porque a maior parte
das lideranças de esquerda se definiu nos últimos cem anos como socialistas,
mas insistiu em deixar claro que não eram revolucionários. Mais complexa, também, porque as
revoluções são uma tendência histórica, enquanto o socialismo é somente uma
possibilidade história. São, portanto, dimensões diferentes do problema da
transição pós-capitalista. A maioria dos trabalhadores das sociedades
urbanizadas aderiu ao longo do século XX a alguma variante de projeto
socialista. A principal exceção foi o proletariado norte-americano. Mas essa
mesma maioria dos trabalhadores permaneceu leal às expectativas reformistas de
seus dirigentes. Desejavam o socialismo,
mas temiam a revolução.
Trotsky
e a avaliação da crise de 1929
As crises econômicas da época
contemporânea foram, por definição, crises internacionais, mas não se
manifestaram da mesma forma em todos os países. A crise mundial de 1929 foi
muito mais severa nos EUA e na Alemanha, do que no Brasil ou na Colômbia, ou
seja, os seus efeitos destrutivos foram mais acentuados naqueles países onde a
industrialização era mais avançada, do que naqueles onde a maior parte do PIB
ainda dependia da mineração, da agricultura ou da pecuária. As crises
econômicas contemporâneas foram, também, mais devastadoras nas nações mais
integradas no mercado mundial, do que naquelas com economias mais isoladas,
autárquicas, ou menos internacionalizadas.
A crise iniciada em 2008 foi
caracterizada como a mais perigosa desde 1929, e já significou uma mudança na
relação de forças entre as corporações concorrentes, e entre os Estados. Como
aconteceu em outras circunstâncias, por exemplo, quando da crise das dívidas
externas latino americanas nos anos oitenta do século XX que atingiu duramente
a Argentina e o Brasil, alguns países sofrerão mais do que outros, e
mergulharão em decadência por um período histórico indefinido. A Grécia vive um
processo de semicolonização que teve como maior indicador a presença de um
interventor do Banco Central Europeu na vigilância de seu Ministério das
Finanças. Portugal caminha na mesma direção.
Não obstante, são as transformações
nas posições relativas das economias nacionais no mercado mundial que terão
conseqüências mais duradouras. A Itália respondia por 5% das exportações
mundiais há somente dez anos atrás e, em 2011, sua participação caiu para 3%.[4] Enquanto algumas
nações mergulham em uma etapa de decadência nacional crônica, como o Estado
Espanhol e a Irlanda, outros como a Alemanha agigantam sua força no sistema
Internacional de Estados.
A citação de Trotsky nos ajuda a
recordar que a posição da URSS se fortaleceu na primeira metade dos anos trinta
do século XX, porque a República dos Sovietes foi poupada da destruição que
atingiu, a partir de 1929, o centro do capitalismo:
A etapa que
estamos vivendo se caracteriza pelo fato de que o capitalismo se afundou ainda
mais profundamente no marasmo da crise, enquanto a União Soviética avançou em uma
proporção que cresce constantemente. O perigo consiste em que na próxima etapa
o mundo possa apresentar um panorama até certo ponto oposto. Mais especificamente, o capitalismo sairá
da crise e na União Soviética explodirão todas as contradições (...) Nos
prognósticos políticos há que considerar as melhores e as piores hipóteses. A
realidade se desenvolverá em algum ponto entre as duas, ainda que podemos temer
que se aproximará mais da pior que da melhor.[5]
A posição relativa da América Latina se
alterou então, também, favoravelmente, porque os governos Cárdenas e Vargas
suspenderam o pagamento de suas dívidas externas, aproveitando-se do debilitamento
dos EUA. Contudo, a passagem de Trotsky nos remete a uma contextualização mais
complexa, porque fez o prognóstico de que os EUA, apesar de mais atingidos pela
crise de 1929 do que a Europa e, sobretudo, do que a URSS, poderiam sair muito
mais fortalecidos da década de trinta do que Moscou.
Não foram necessários muitos anos para
a verificação desse vaticínio, porque já em 1936 a URSS mergulhou no pesadelo
histórico dos processos de Moscou, e a desestruturação social e política
aumentou ininterruptamente, até à catastrófica destruição quando da invasão
nazista. Em outro texto da mesma época Trotsky pontuou:
Creio que a
América do Norte criará o mais colossal sistema militar de terra, mar e ar que
se possa imaginar. A superação definitiva de seu velho provincianismo, a luta
por mercados, o crescimento do armamentismo, a política mundial ativa e a
experiência da crise atual, tudo isso introduzirá mudanças profundas na vida
dos Estados Unidos. Para resumir se pode dizer que a União Soviética se
americanizará, que a Europa se sovietizará ou cairá no fascismo, e que os
Estados Unidos se europeizarão politicamente.[6]
Esta segunda transcrição foi ainda
mais profética ao desenhar a possibilidade, naquele momento impensável, de uma
fascistização da Europa, se não triunfasse a revolução na Alemanha.[7]
As mudanças nas posições relativas de
cada país no sistema internacional de Estados acontecem hoje mais rapidamente
que antes, ainda que essas mudanças sejam mais lentas que a alteração do lugar
de cada economia nacional no mercado mundial. O mundo nunca esteve tão tão
unificado, economicamente, como neste início do século XXI, mas o capitalismo
foi incapaz de superar os obstáculos colocados pela permanência de fronteiras
nacionais. Não há senão uma simulação de coordenação internacional, essencialmente,
negociada pelos países do G-7, liderado pelos EUA. O sistema internacional de
Estados continua preservando uma forma anacrônica e rígida. Nenhum país da
periferia alterou, substantivamente, sua inserção política mundial.
O perigo de uma depressão não foi
superado
Existem acontecimentos que despertam
imediatamente o assombro generalizado porque a força de impacto de sua
importância é instantânea. Foi assim com o Maio de 68 na França e a Primavera
de Praga, a revolução portuguesa em 1974/75, a revolução sandinista e iraniana
em 1979, a greve dos estaleiros de Gdansk em 1980, a queda de Baby Doc Duvalier
no Haiti em 1986 ou, mais recentemente, a queda de De La Rua em Buenos Aires em
2001, a derrota do golpe contra Chávez na Venezuela em 2002, ou a deposição de
Gonzalo de Losada na Bolívia em 2003. Contra-revoluções podem ser igualmente
imponentes, porque provocam o horror imediato: foi assim no Chile de Pinochet
em 1973, ou na Argentina de Videla em 1976, ou ainda na Praça Tian An Men na
China em 1979.
Mas existem, por outro lado, processos
cuja percepção é muitíssimo mais difícil, e o seu terrível significado só é
apreendido anos depois. Às vezes, muitos anos depois. Porque há decisões que
são tomadas entre quatro paredes pelos poderosos do mundo para manter a ordem,
mas que são apresentadas diante das massas como sendo a defesa de suas
aspirações. Foi assim ao final da II Guerra Mundial quando, em Yalta e Potsdam,
a vitória revolucionária contra o nazi-fascismo foi usurpada para garantir a
coexistência pacífica, garantindo a preservação do capitalismo na Europa do
Mediterrâneo, e salvando Salazar e Franco por mais três décadas. As sequelas da
crise econômica internacional aberta em 2008 permanecem confusas porque seu
significado ainda está em disputa.
Crises econômicas são hecatombes
destrutivas, mas a destruição de capital atinge em cada crise alguns
continentes mais do que outros, alguns países mais do que outros, mergulhando
as nações mais vulneráveis em um processo de regressão social cujas sequelas
podem ser irreversíveis. A ameaça de que a recessão européia, associada à
fragilidade da recuperação norte-americana e à desaceleração chinesa possam ser
o prelúdio de uma depressão decenal ainda está colocada. A hora das grandes
lutas não ficou para trás. Está nos anos por vir.
*
Professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) e
doutor em História pela USP.
[3] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? São Paulo: Editora Desafio,
1994, p. 61-62.
[4] Uma das novas características mais importantes do capitalismo do
início do ´seculo XXI foi a aceleração do comércio mundial em comparação ao
crescimento dos PIBs nacionais, revelando a crescente internacionalização,
portanto, expansão do mercado mundial. O comércio mundial teve, em 2010, um
crescimento quatro vezes maior do que o crescimento do PIB mundial. As
economias dos EUA, da Alemanha e da China responderam por 28% das trocas da
economia mundial em 2010. http://www.wto.org/french/res_f/statis_f/its2011_f/its11_highlights1_f.pdf
Consulta em
março de 2011.
[5] TROTSKY, Leon. Algumas idéias sobre a etapa e as tarefas da
oposição de esquerda. Escritos, Tomo
II, 1930-31, volume 2. Bogotá: Editorial Pluma, 1977, p.427. (tradução
nossa)
[6] TROTSKY, Leon. Respostas ao New York Times. Escritos, Tomo III, 1932, volume
1. Bogotá: Editorial Pluma,
1977, p.76. (tradução nossa)
[7] Rosa Luxemburgo compartilhava uma apreciação semelhante a de Trotsky
sobre a dinâmica histórica do capitalismo, anunciando uma diminuição do
intervalo entre as crises, e crescentes dificuldades de retomar o crescimento,
ou seja, a previsão de uma tendência à estagnação: “ Se a produção capitalista gera um mercado suficiente para si, a
acumulação capitalista (considerada objetivamente) é um processo ilimitado. Se
a produção pode sobreviver, continuar a crescer sem obstáculos, isto é, se pode
desenvolver as forças produtivas ilimitadamente,(...) desmorona um dos mais
fortes pilares do socialismo de Marx.(...) Mas (...) o sistema capitalista é
economicamente insustentável. (...) Se, no entanto, aceitarmos com os
"especialistas " o caráter econômico ilimitado da acumulação
capitalista, o socialismo perde o piso granítico da necessidade histórica
objetiva. Ficamos perdidos nas nebulosidades dos sistemas pré-marxistas que
queriam deduzir o socialismo somente da injustiça e maldade do mundo, e da
decisão revolucionária das classes trabalhadoras”. LUXEMBURGO,
Rosa, “El Problema en discusión” in La acumulacion de Capital,
México, Cuadernos de pasado y Presente 51, 1980, p.31. Este ensaio é também
conhecido como a Anticrítica.
[1] ANDERSON, Perry. Considerações
sobre o marxismo ocidental. Lisboa, Afrontamento ,1976. p. 23).
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